Por Francisco Bicudo
“Estão nos enviando à guerra por razões fictícias. Que vergonha, senhor Bush, vergonha do senhor. O seu tempo acabou”. Enquanto o auditório lotado pelas celebridades de Hollywood se dividia entre os aplausos e as vaias, o cineasta Michael Moore, autor de “Tiros em Columbine”, o vencedor do Oscar de melhor documentário de 2003, deixava registrado na história da Academia de Cinema o seu discurso de protesto não apenas contra a guerra do Iraque, mas também contra uma sociedade atormentada pelo sentimento do medo, e que busca no comércio desenfreado de armas uma solução fictícia contra um inimigo na maior parte das vezes difuso e obscuro, mas que pode ganhar formas e contornos definidos de acordo com as conveniências e interesses de cada momento. Os adversários podem ser os negros, os latinos, os comunistas, os bandidos, os terroristas. Qualquer que seja seu nome, o importante é que a sociedade norte-americana esteja preparada para se defender – com armas, de preferência. Armas que são capazes de tragédias como a ocorrida em 20 de abril de 1999, quando dois alunos da Columbine High School de Littleton, no Colorado, invadiram o refeitório da escola armados e mataram 12 pessoas, ferindo outras 23. O episódio é o ponto de partida para a narrativa vencedora de Moore.
Não é preciso ir muito longe, no entanto, para se deparar com uma realidade e um discurso que seguem caminhos próximos e semelhantes – e tão perigosos quanto. À medida que se agrava a crise social e a violência no Brasil, aumenta em escala ainda maior a quantidade dos que defendem que a população se arme até os dentes para se “defender dos bandidos”. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em junho do ano passado mostram que, entre 1992 e 1999, a média nacional de mortalidade por homicídios aumentou significativamente, passando de 19,12 para 26,18 assassinatos para cada mil habitantes. Segundo o Instituto “Sou da Paz”, a cada 13 minutos, uma pessoa é assassinada no Brasil. Em quase 90% dos casos, há armas de fogo envolvidas. Para a ONG “Small Arms Survey”, que tem sede na Suíça, existem no Brasil 18,5 milhões de armas – apenas sete milhões delas são registradas. Esse arsenal seria responsável por 41 mil mortes anuais no país.
Na contramão do discurso armamentista, o deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) foi o relator de um projeto que pretende restringir ao máximo o comércio e a posse de armas de fogo. Sem medo de encarar os arroubos conservadores, a idéia segue lógica inversa: a sociedade precisa se desarmar para vencer o fantasma da violência. “Estamos tentando preterir a violência e salvar vidas”, afirma Greenhalgh. Ele admite: sozinho, o Estatuto do Desarmamento, como ficou conhecida a proposta aprovada pelo Senado Federal no último dia 17 de julho, não resolverá toda a questão. Mas, alerta, “precisávamos de uma medida para o agora”. E, para ele, diminuir o número de armas em circulação é fundamental para ajudar a combater o cenário de quase guerra civil e de holocausto cotidiano instalados no país. O texto aprovado pelos senadores parte do princípio filosófico de que violência só gera mais violência – e que esta só poderá ser efetivamente vencida por meio de uma ação efetiva do Estado enquanto promotor de políticas públicas capazes de garantir o acesso aos direitos básicos de cidadania, a distribuição de renda, o direito ao emprego e à educação e a justiça social.
Dentre outros pontos, o Estatuto proíbe o porte de armas em todo território nacional, ficando este apenas permitido apenas para “integrantes das Forças Armadas, policiais, seguranças e para quem mais comprovar necessidade”, como explica o deputado-relator. A compra de armas passa a ser autorizada pelo Sistema Nacional de Armas e Munição (Sinarm), mediante requisitos pré-estabelecidos. O comprador deve ter 25 anos – atualmente, a idade exigida é de 21 anos. No prazo de 180 dias após a publicação da lei, quem entregar a arma à Polícia Federal será indenizado. O porte ilegal passa a ser classificado como crime inafiançável. Por fim, a proposta prevê para outubro de 2005 um plebiscito sobre o tema, para que a população possa decidir sobre o comércio de armas de fogo.
Depois de passar por unanimidade pelo Senado, o Estatuto segue agora para a Câmara dos Deputados, onde a batalha promete ser bem mais dura. De acordo com a agência de notícias da Câmara, as críticas ao projeto de Greenhalgh já começam a tomar corpo. O deputado Luiz Antonio Fleury Filho (PTB-SP) não concorda com a proibição de compra de armas para menores de 25 anos. Onyx Lorenzoni (PFL-RS) defendeu o porte para pessoas que “prestam serviço de risco”, como médicos que trabalham à noite e motoristas de caminhão. Em entrevista exclusiva ao site do SINPRO-SP, Greenhalgh ressaltou que a tarefa não será fácil. Mas, confiante na força dos argumentos e certo de que o país não deve procurar saídas casuístas ou imediatistas, que se deixam levar por discursos apelativos e carregados de emocionalismo e que, no limite, colocam em xeque o próprio pacto social e o estado de direito, o deputado se mostra confiante e diz que pretende superar mais essa etapa. Como? “Provando que armas de fogo tiram a vida da nossa juventude”.
Leia mais:
- Instituto Sou da Paz
www.soudapaz.org.br
- Site “Desarme”, um projeto da ONG “Viva Rio”
www.desarme.org
- Núcleo de Estudos da Violência da USP
www.nev.prp.usp.br
- ONG “Small Arms Survey” (em ingles)
www.smallarmssurvey.org
- Site do cineasta americano Michael Moore (em inglês)
www.michaelmoore.com