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O repórter-escritor Gay Talese

Francisco Bicudo

Em tempos de reverência ao espetáculo, de adoração pelo entretenimento, de valorização da velocidade e de culto às celebridades, o repórter-escritor, Gay Talese, ajudou a colocar os pingos nos ‘is’. Deu uma verdadeira aula sobre como fazer bom jornalismo. Falou sobre métodos de apuração, técnicas de entrevista, construção de personagens e explicou como usa os recursos da literatura para contar as chamadas histórias da vida real. “Nunca quis estar nas manchetes ou primeiras páginas dos jornais. Também não me interessava por produzir notícias, sempre efêmeras. Queria escrever não ficção, usando o potencial oferecido pela ficção. Era meio rebelde. Brigava com meus patrões e chefes. No início, muitos dos textos que escrevi não foram publicados”.

Experiências vividas na infância ajudam a compreender com mais precisão o repórter que nasceu em Talese – influência que o autor fez questão de destacar em vários momentos da palestra. Quando criança e jovem, nos Estados Unidos, viveu em um sobrado que, na parte de cima, fazia as vezes de casa; o andar térreo abrigava o escritório do pai – um alfaiate italiano – e a loja de vestidos da mãe, que recebiam fregueses das mais diferentes origens e classes sociais. Além disso, no início dos anos 1940, Talese acompanhou de perto a agonia dos pais com o desenrolar da II Guerra Mundial – embora adepto da democracia e disposto inclusive a se alistar no exército norte-americano, o velho alfaiate italiano era um católico fervoroso e sofria com as notícias dos bombardeios e a destruição de cidades italianas, principalmente no sul do país, sua região de origem, além de preocupar-se com irmãos e outros parentes, que defendiam o exército de Benito Mussolini. Durante o dia, por conta da presença constante da freguesia, dos moradores do bairro, as conversas pareciam pender para o lado dos aliados; à noite, sozinhos, marido e mulher cerravam fileiras com as raízes italianas. O pequeno Talese via as relações de mundo construídas a partir da leitura e da perspectiva ambíguas e contraditórias de duas pessoas, ficava perdido e se perguntava de que lado da guerra estavam... “Aprendi que uma história é sempre complexa e comporta várias versões. Aprendi a ouvir. Agucei minha curiosidade. E aprendi a escutar as histórias de pessoas simples, que não recebem atenção e importância”.

Foi esse repertório jornalístico, amadurecido ao longo de décadas de carreira, que permitiu a Talese escrever um dos mais famosos perfis da história da reportagem – o do cantor Frank Sinatra. Detalhe: Talese produziu o texto sem jamais ter entrevistado A Voz. “Sinatra não queria falar comigo, mas eu também não desejava conversar com ele. As fontes sempre contam aquilo que querem que você ouça e saiba, nem sempre são autênticas ou transparentes. Preocupei-me em entrevistar o entorno dele, o produtor, o sujeito que fazia parte da banda, o motorista. Sempre tive paciência para passar muito tempo acompanhando pessoas anônimas, com quem tinha muito pouco em comum”. No Brasil, o texto famoso pode ser encontrado no livro Fama e Anonimato. O desejo de compreender a essência de seus personagens e de mergulhar o máximo possível em cada uma de suas histórias no entanto já colocaram Talese em situações mais do que complicadas.

Nos anos 1970, mais precisamente em 1971, quando os Estados Unidos ainda viviam tempos de redefinição da moralidade, principalmente no quesito sexual, e quando parcela da sociedade mergulhava nas discussões sobre homossexualidade e feminismo, Talese estava uma noite, por volta das onze horas, andando pelo bairro onde vivia, em companhia da mulher, quando notou no meio da rua uma placa que oferecia shows de mulheres nuas. Movido pela curiosidade de sempre, pensou: “é uma revolução de comportamento e preciso escrever sobre isso”. Foi assim que nasceu outra das obras famosas do jornalista – A Mulher do Próximo. Talese levou a disposição às últimas consequências e acabou inclusive tornando-se por um tempo gerente de casa de massagem, expondo sua esposa e o casamento às críticas e condenações públicas. “Fiquei fascinado. Queria saber quem eram os clientes, falar com as mulheres massagistas, saber como viviam e o que pensavam, queria ter o conhecimento dos cafetões. É verdade que me associei a pecadores, o que contrariava minha rígida formação católica. Corri os riscos, mas foi tudo resultado da minha curiosidade.”. Talese concluiu o raciocínio com uma espécie de definição sobre o jornalismo: “é o desejo de penetrar em diferentes níveis da sociedade, para compreendê-los, não para explicá-los ou julgá-los”.

O escritor destacou que, como jornalista, sempre quis conhecer a verdade, não apenas em sua porção factual ou momentânea, mas em sua dimensão de contextos, em sua perspectiva de longa duração. E repetiu seu mantra: “trabalho com histórias reais, criando relações de confiança com pessoas reais, mas usando recursos narrativos da ficção”. A possibilidade de encontro e namoro bem-sucedido entre jornalismo e história foi exaltada por outro autor que participou da FLIP, durante sabatina promovida pelo jornal Folha de S. Paulo em julho: o historiador inglês Simon Schama, que lançou recentemente no Brasil o livro O Futuro da América, onde discute a democracia norte-americana a partir da eleição do presidente Barack Obama, mesclando linguagem e técnicas de entrevista jornalísticas com o rigor da pesquisa histórica. “Foi uma tentativa de conciliar esses dois modos tão ricos de escrita. Creio que a História muitas vezes fica presa nas vozes de professores e acadêmicos. Não vejo nada de errado em usar um império de palavras mais acessíveis e interessantes. É a liberdade fundamental do artesão. E não se perde credibilidade, nem se deixa de lado a seriedade. Precisamos de pessoas para escrever as histórias”, defendeu o inglês.

Durante a entrevista coletiva realizada na FLIP, Talese já havia ressaltado a importância dos personagens e de um rigoroso trabalho de apuração para a sistematização de narrativas jornalísticas. Ele usou como exemplo a reportagem que nasceu quando acompanhava entediado, em julho de 1999, à final do campeonato mundial de futebol feminino, disputada entre as seleções da China e dos Estados Unidos. A partida foi decidida na cobrança de pênaltis e vencida pelas norte-americanas. Apenas uma chinesa desperdiçou sua cobrança – Liu Ying. Talese decidiu que tinha de contar a história dela. Identificou naquele estádio (o Rose Bowl, na Califórnia) mais do que um jogo de futebol – percebeu traços da nova ordem mundial, da geopolítica internacional e da presença cada vez mais marcante das mulheres na fechada sociedade chinesa. Pegou o avião e foi para a China, atrás de Liu.

Ao desembarcar em Pequim, arranjou imediatamente um tradutor – “não falo uma palavra de mandarim”. Depois de vários contatos, ajuda de intermediários e de muita burocracia, teve direito apenas a alguns minutos de conversa com a atleta no centro de treinamento, vigiado por funcionários do governo chinês. Não satisfeito, pediu ajuda do tradutor e finalmente construiu a oportunidade de se encontrar com a mãe da jogadora, resgatando ainda as memórias da avó da esportista. Talese passou cerca de três meses em Pequim. E escreveu uma fascinante reportagem sobre três gerações de mulheres chinesas, acompanhando as mudanças que tinham vivido nas últimas décadas, a passagem pela Revolução Cultural de Mao-Tsé-Tung e as dificuldades que ainda enfrentam. Toda essa saga está relatada com pormenores nas mais de 500 páginas de Vida de Escritor, a mais recente obra de Talese lançada no Brasil, junto, claro, com tantas outras experiências jornalísticas vividas pelo repórter (incluindo seus erros e fracassos) ao longo da carreira.

“Busquei mais uma vez os anônimos. E tudo o que você tem de fazer é estar ao lado deles, perto deles. Poderia ter simplesmente mandado um e-mail para a Liu e aguardado a resposta. Não é assim que funciona. Para fazer jornalismo, é preciso ter paciência, persistência, curiosidade e saber ouvir. É preciso ir às ruas. O google não resolve”.

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