Francisco Bicudo
Certamente a principal estrela da Festa – além das duas tendas completamente apinhadas, o público ainda disputava espaço nas proximidades das grades de proteção; a fila para autógrafos, ao final da palestra, chegou a reunir mais de mil pessoas –, foi o cantor, compositor e escritor Chico Buarque, que dividiu a mesa com o amazonense Milton Hatoum. Chico estava excepcionalmente falante e desinibido e revelou com minúcias quais foram as inspirações que o fizeram escrever Leite Derramado, que tem como narrador o centenário Eulálio, acompanhado pela presença permanente de Matilde, mulher por quem fora apaixonado durante a juventude e que misteriosamente o abandona, deixando para sempre feridas no coração do protagonista.
Chico contou que desejava dar conta do desafio de escrever sobre um tempo que não tinha vivido (a ação principal se concentra nos anos 1920). O estímulo veio ainda de sua música Velho Francisco, que canta em suas estrofes que hoje é dia de visita, vem aí meu grande amor, ela vem toda de brinco, vem todo domingo, tem cheiro de flor. Quem me vê, vê nem bagaço do que viu quem me enfrentou. Campeão do mundo em queda de braço, vida veio e me levou. “O livro é conduzido pela fala de um velho com seus esquecimentos, lapsos de memória, suas fixações e obsessões. As recordações de infância são mais fortes que as dos tempos recentes. Esse recurso nos conduz cada vez mais longe no tempo, até que chegamos ao Brasil Império e à Colônia”. A história parte assim do tempo presente e as memórias retrocedem até o início do século XIX. “É um ritmo desordenado porque as lembranças dele são desordenadas. Esse recurso ajuda a criar momentos de tensão”.
A experiência de Hatoum com “Órfãos do Eldorado” seguiu caminhos completamente diferentes. A mais recente obra do amazonense – uma novela que tem como protagonista Arminto Cordovil e lida o tempo inteiro com mitos amazônicos e a referência da cidade encantada perdida – foi encomendada por uma editora escocesa. O autor tinha permissão para escrever até 25 mil palavras – mas com pouco tempo de produção percebeu que já havia estourado, e muito, esse limite. Viu-se obrigado a repensar a narrativa, optando pela novela. “É um recorte trágico e intenso, que deve explorar o escondido que se revela. Foi um duro exercício de concisão”, afirmou, prometendo nunca mais aceitar encomendas. “Fiquei muito angustiado com os prazos”.
Por coincidência, a obra é também marcada pela presença de uma forte personagem feminina – Dinaura, figura que aparece e repentinamente some, que passa o livro todo sem dizer uma palavra, exceção feita aos sonhos e pesadelos do protagonista, e por quem Armindo é perdidamente apaixonado. A cidade de Vila Bela, onde boa parte da trama se desenvolve, foi claramente inspirada em São Luis de Parintins, palco de enfrentamentos entre índios e portugueses durante a Cabanagem (revolta acontecida no sul do Pará entre 1835 e 1840, durante o período das regências) e idealizada como a cidade perfeita e harmônica – assim como Eldorado. “Cresci ouvindo os mitos amazônicos, ali estão presentes minhas experiências de infância e de juventude. Aliei essa vantagem à pesquisa de campo, quando li e ouvi especialistas no assunto e antropólogos”, completou Hatoum. O escritor admitiu que há em “Órfãos do Eldorado” uma série de referências e homenagens, mais ou menos explícitas, a diversos escritores da Língua Portuguesa, como Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Cesário Verde e Luis de Camões.
“Mas não vou entregar tudo. Esse recurso faz parte da tradição de qualquer autor. Os textos são sempre escritos a partir de outras influências”. Para o amazonense, autor também das obras “Cinzas do Norte” e “Dois Irmãos”, a proposta era transformar os mitos e as lendas em narrativa ficcional, mas realista. “As lendas que o protagonista ouve durante a infância vão rebater ao final da vida dele. É o mito como revelação”, definiu. Questionado sobre seu regionalismo, Hatoum disse ter orgulho dessa característica e decretou: “talvez eu seja o mais regionalista dos escritores contemporâneos, mas sou também um dos mais lidos fora da Amazônia, incluindo o exterior. Quanto mais regionalista, sou mais universal”.
Chico lembrou que Leite Derramado foi sistematizado também a partir das lembranças de infância e das histórias que ouvia o historiador Sergio Buarque de Holanda contar. “Não sou profundo conhecedor da obra de meu pai, mas ouvia os papos dele com os amigos e as histórias escabrosas que revelava sobre figurões do Brasil, as fofocas de bastidores, aquelas que não estão nos livros. Foi assim que busquei inspiração para construir a figura do Eulálio, um quatrocentão racista e preconceituoso”. Para muitos críticos, trata-se de um dos barões famintos que se envolviam em tenebrosas transações, como canta o samba “Vai Passar”. Sobre a força do protagonista, Chico arrancou gargalhadas da plateia ao revelar que foi assombrado por Eulálio durante muito tempo. “Ouvi a voz dele por pelo menos um ano e meio. Cheguei a quebrar a perna, como ele. Pensei: ‘tenho de sair desse velho’. Para mim, é sempre muito difícil me despir de um narrador”. Hatoum completou usando uma frase do escritor mexicano Octavio Paz, que dizia que “o romancista é um biógrafo de espectros”.
O compositor e escritor admitiu que escreve lentamente e que até a metade de “Leite Derramado”, antes de investir na continuidade da trama, relia o que já estava pronto, para retomar o fio da meada. Foi nesse contexto que afirmou que “escrever é uma chatice” – não com sentido de algo enfadonho, mas como um exercício trabalhoso de paciência. Ao comentar a possível relação entre música e literatura em suas obras, garantiu que não vê grandes ligações entre as duas artes e que, quando escreve, não compõe – e vice-versa. “Mas é verdade que preciso sentir musicalmente cada frase do livro que escrevo. Se não for assim, apago”, finalizou Chico, para em seguida manifestar solidariedade às comunidades indígenas e quilombolas de Paraty, que naquele dia tinham protestado contra o turismo predatório na região.