Professora, qual a conclusão do Colóquio promovido pela Universidade Estadual Paulista? O pensamento de Jean Piaget continua atual?
Com certeza continua e vou explicar por que. Jean Piaget se formou em biologia na Suíça e estudou e se debruçou sobre todos os temas que pesquisou com um olhar de biólogo. E há 40 ou 50 anos ele propôs uma série de hipóteses que explicariam – a partir desse olhar do biólogo – a maneira pela qual os seres vivos aprendem. Hoje, quase todas as hipóteses de Piaget já foram comprovadas por uma área do conhecimento que hoje chamamos de neurociências. Ou seja, o que ele propôs diz respeito à genética humana e, portanto, não mudou e nem deve mudar nos próximos tempos.
Mas tradicionalmente se liga o pensamento de Piaget à educação e à psicologia e não à biologia ou à genética...
Exatamente. As pessoas que estudam a obra de Piaget ignoram solenemente a natureza de suas observações, que eram científicas e biológicas, e acabam repetindo ideias maquiadas de teorias de educação ou trabalham com explicações psicológicas, sem se dar conta de que estão deixando de lado a origem, o principal. E, ao fazer isso, também se pode perder um pouco da validade do que Piaget propôs.
A senhora disse que as pessoas olham para as teorias piagetianas buscando questões psíquicas, enquanto que para se conhecer em profundidade esse pensamento a investigação deveria partir de um olhar biológico. Onde está o mal-entendido?
A obra de Piaget, que foi um autor muito fértil, porque escreveu mais de 20 mil páginas, não mudou nunca. Acontece que a interpretação dessa obra sofreu influências demasiadas da psicologia, da sociologia e da antropologia, por exemplo. Não é que não se possa estudar esse pensador à luz desses outros saberes, mas a origem dele não está aí. Apoiar-se nas humanidades foi uma tendência visível das pesquisas realizadas no Brasil e no mundo a partir de meados do século 20 e foi isso que aconteceu com a obra dele.
E qual é essa questão central para a qual a senhora chamou a atenção, que a neurociência comprova, e que pode finalmente ser fundamental para a Educação?
É difícil resumir numa conversa, mas diz respeito ao que Piaget chamou de embriologia mental. Ou seja, o ser humano – e os outros animais também – evolui nas trocas que o organismo estabelece com o meio. Veja como isso é biológico. E alguns estudiosos não entendem bem o peso do meio nesse processo de evolução e aprendizado, digamos assim. Não sabem bem como o meio afeta o organismo e como se dá essa troca. Pois bem, a evolução está calcada na plasticidade do cérebro, que é uma ideia já confirmada pela neurociência, que revela que o cérebro vai se moldando a partir dos estímulos que recebe do ambiente. Pesquisas bem avançadas com crianças vitimizadas, vítimas de traumas e de violências graves, indicam que elas chegam a sofrer mudanças no DNA e no RNA, provando a grande ação do meio sobre o organismo. É essa matriz biológica que os estudiosos em geral não entendem bem e acabam aplicando essas ideias apenas às mudanças de comportamento e às mudanças psíquicas. Que também podem acontecer, mas que são a segunda e a terceira etapas.
E onde mora a dificuldade de entender e aceitar essa origem biológica?
A gente lê aquilo que a gente conhece, ou seja, se o aluno que está estudando para ser professor não entende nada de biologia e é ensinado por um professor que também não entende nada de biologia e assim por diante, a compreensão fica prejudicada. Não é culpa do aluno nem do professor, mas de todo um sistema que deixa passar em branco essa questão simplesmente fundamental. Jean Piaget fala bastante sobre como se dá essa troca com o meio e como ela molda o cérebro, levando ao aprendizado, em última instância. Ou seja, primeiro acontece a evolução e depois a mudança no comportamento. Se você não entende bem a primeira, como vai discutir a segunda?
Como é então essa evolução que tem origem no meio e que leva ao chamado aprendizado?
O estímulo do ambiente primeiro toca o organismo, modifica mesmo as estruturas orgânicas, aquilo que influencia no sistema de representações das pessoas e que afeta a linguagem. A partir daí, chega ao psiquismo, que tem a ver com comportamento e com processos emocionais, por exemplo.
E perceber essa cadeia fundamentalmente orgânica muda em que medida o que se entende por educação?
Ah, muda radicalmente, porque o modo de entender o que é aprendizagem e de influir nesse processo se modifica. A primeira diferença bem visível é a questão do verbal, da linguagem. O professor que quer educar baseado no pensamento piagetiano precisa saber em profundidade que a etapa do verbal é a terceira, depois que o aluno já passou pela mudança orgânica e pela mudança no sistema de representações. A chegada ao verbal só é desejável depois das outras duas, sob risco de o aluno não aprender verdadeiramente.
Mas isso transformaria de forma significativa a maneira pela qual as escolas ensinam seus alunos.
Pode mudar sim. O professor precisa lembrar que até determinada idade a troca não se dá por meio verbal, mas sim orgânico, o que está fundamentado na ação, no corpo. Depois isso flui para a imaginação, para a criação mental e só depois para o verbal. Respeitar as fases de desenvolvimento exige, portanto, esse conhecimento.
Por que a senhora acha que a formação do professor construtivista descarta, ou não se aprofunda, nessa questão biológica? Acredita que os educadores consideram que seria um reducionismo limitante aceitar que parte do processo de aprendizagem – talvez a parte mais importante, por ser a gênese – está calcada na biologia e não na cultura, por exemplo?
Acredito que não passe por aí. Entendo que há mesmo uma questão grave de formação. E que não é só na formação do educador. Hoje não vemos biólogos muito atentos à questão da pedagogia, ou da psicopedagogia, ou ainda da educação. Nem os biólogos se interessam pela educação e nem os educadores se interessam pela biologia. E mesmo com estágio bem avançado da neurociência no Brasil, essa intersecção entre biologia e epistemologia é algo difícil de encontrar.
Na verdade então Jean Piaget criou uma área nova, que liga fortemente a biologia e a educação? Mas ao mesmo tempo essa área parece não ter prosperado assim de forma unida.
E por responsabilidade dos nossos currículos, que fragmentam e compartimentam excessivamente os saberes. Imagine como seria fundamental os professores que pretendem de fato conduzir o processo da aprendizagem compreenderem a fundo a ideia piagetiana de embriologia mental, ou a maneira pela qual as capacidades mentais vão se constituindo. E para conhecer isso precisa ter interesse no ser humano, na parcela orgânica e biológica desse ser humano.
O que a senhora defende é a religação dos saberes?
Sim, e que a educação fique nas mãos de pessoas que entendam das duas áreas. Porque a teoria que a neurociência propõe para a aprendizagem e a teoria do conhecimento do homem adulto ou da criança, essa ligada à educação, estão muito distantes entre si e, segundo Piaget, isso não precisa ser visto assim. As pessoas conhecem muito pouco da obra de verdade de Piaget, de forma que espalham por aí que ele teria chegado às suas idéias depois de observar e entrevistar crianças. Foi o oposto, primeiro ele bolou as hipóteses e aí foi a campo buscar a comprovação delas no trabalho com as crianças. Depois disso, ele defendeu as conclusões em público. Pode parecer que não, mas isso faz diferença.
Por quê?
Porque Piaget não se interessou pelos conteúdos que as crianças aprenderam. Essa é a parte que compete à Pedagogia. Ele observou a maneira pela qual a criança aprendeu. E essa é a parte da neurociência. Encarar Piaget como educador, ou como psicopedagogo, fere a hipótese que o biólogo desenvolveu e comprovou e que é capaz de transformar o que chamamos de processo de ensino-aprendizagem, a educação propriamente dita.