Ainda na euforia do lançamento, qual a repercussão que o livro está alcançando e as discussões que ajuda a levantar?
Foi muito boa. Tivemos dois momentos principais. Na quinta-feira, dia 18 de março, a gente organizou duas mesas de debates. Na primeira, “Por que a verdade precisa de uma comissão?”, fiz a mediação. Contou com a presença do advogado e professor da Universidade de São Paulo, Fábio Konder Comparato, e com a cientista política Glenda Mezarobba. A segunda mesa foi mediada pelo Vladmir Safatle, que também organizou o livro, e teve a participação do professor de Filosofia da USP, Paulo Arantes, e do Secretário Nacional dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi. O tema dessa segunda era “Políticas da verdade e da memória” e o debate foi bem interessante, porque demonstrou quanto o governo Lula é ambíguo em relação a esses assuntos. A discussão a respeito do Plano Nacional dos Direitos Humanos trouxe essa cisão à tona. Ali você tem pessoas, como o secretário Vanucchi, que são favoráveis à instalação da Comissão da Verdade, à investigação completa, à reparação e tudo mais, e gente como o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que não quer nem discutir o assunto. E na sexta feira, 19 de março, realizamos a noite de autógrafos, que foi outra grata surpresa, porque também estava bem lotada – assim como os debates –, embora não tenha saído uma linha sobre os eventos na grande imprensa. Para a gente ficou bem claro como esse assunto ainda é maldito na mídia, ainda mais quando atualiza a discussão, em vez de mantê-la congelada no passado.
O livro nasceu justamente de um evento que vocês organizaram em 2008, não?
Exatamente. Foi logo depois que a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério Público e outras entidades de defesa dos direitos humanos entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a reinterpretação da Lei de Anistia, que perdoava também os torturadores. Naquele momento esse era um grande fato que estava acontecendo, e a sociedade não conseguia alcançar a importância do movimento, porque não havia reflexão em profundidade a respeito do tema. O que se diz ainda hoje e também o que se falava naquela época é muito baseado em argumentos do senso comum, preconceituosos, chavões mesmo, já prontos, estagnados, e a gente estava sentindo falta de um aprofundamento, de reflexões que, por um lado, atualizassem a discussão e, por outro, ventilassem o debate. É como se o olhar até então tivesse permanecido preso à época da ditadura e muito pouco tivesse sido construído sobre o tempo de democracia que vivemos e que estamos fazendo a cada dia. A gente acreditava também que a academia poderia ser um lugar chave para isso tudo acontecer, primeiro porque ela vinha se posicionando muito ao largo da questão, estava muito pouco envolvida. Foi assim que organizamos o encontro que teve o mesmo nome do livro, em outubro de 2008, e que já atendia aos desejos de discutir a ditadura a partir do olhar de hoje, ou o que resta dela, de uma maneira multidisciplinar e dentro das humanidades, para renovar a discussão, chamando pensadores envolvidos historicamente com o tema e pensadores que, em geral, não são tão ligados automaticamente ao assunto.
Isso significa dizer que não foi um evento nem de especialistas nem para especialistas?
Isso mesmo. As abordagens eram renovadas, o que – com certeza – atrairia outro público, não apenas aquele especializado em discutir a ditadura. Todos nós vivemos esses restos, o assunto é de interesse de todos e não apenas de quem possui notório saber na área. E o evento buscava englobar essa ideia, assim como o livro.
E afinal, quais são hoje os ecos da ditadura militar?
Claro que cada artigo encara um desses restos e certamente deve haver ainda outros, mas eu gostaria de destacar dois, que de certa forma aparecem bastante no livro e apareceram bastante no encontro de 2008 também. O primeiro é a criação de uma cultura de impunidade em relação às violações contra os direitos humanos. A sociedade brasileira tem certeza de que a violações aos direitos humanos não são apuradas, inclusive – ou principalmente – quando são cometidas pelo próprio Estado. A tortura política já existia no país há muito tempo, mas a institucionalização dessa prática e depois o avanço para os crimes comuns foi uma consequência direta da ditadura, porque nunca se apurou essa violação. Então a tortura migra da política e hoje é aplicada sistematicamente por critério social e econômico. Os pobres, que não têm acesso à Justiça, correm fortemente o risco de ter seus direitos humanos violados. No livro a gente trata de um estudo recente de uma pesquisadora norte-americana, Kathrin Sicks, que analisou dez países latino-americanos que haviam passado por ditaduras nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Em todos eles a violação aos direitos humanos estava presente e bem forte. Nos países em que houve apuração dessas práticas, o número de violações caiu sensivelmente. Nos países em que, além das apurações, foram instaladas comissões de verdade, as denúncias caíram mais ainda. Então é diretamente ligada uma coisa a outra.
E essa percepção da não apuração e da consequente impunidade se espalha para outras áreas.
Ela se amplia, cresce para outras percepções. Veja os crimes políticos, por exemplo. A sensação geral é que a corrupção, que é um crime político, não tem a apuração que merece e nem a punição exemplar. É verdade que a gente já avançou bastante, veja o caso do ex-governador do Distrito Federal, que foi detido e perdeu o mandato lá na cela, no prédio da Polícia Federal, em Brasília. Mas há muitos outros. E essa sensação da impunidade está grudada na gente, na América Latina. Tanto assim que, além das violências físicas e psicológicas, os militares cometeram também violências políticas e isso nem se discute. Os generais que tomaram o poder passaram por cima de uma Constituição Federal e jamais foram punidos por isso. Essa seria função de uma Comissão de Verdade.
Você falou em dois grandes restos que gostaria de destacar. Qual é o segundo?
O segundo é o problema da visão do poder político no Brasil. A nossa democracia é, desde sempre, comandada pela mesma oligarquia de sempre. No pré-1964, os latifundiários eram o grupo de peso, hoje são os empresários do agronegócio, que são responsáveis – vale lembrar – por inúmeras violações dos direitos humanos, são suspeitos de assassinato, empregam mão-de-obra escrava e muito mais.
Penso que vale a pena aprofundar as análises sobre essa relação entre ditadura militar e democracia oligárquica...
Estamos falando da centralização do poder, do poder autoritário que nos rege enquanto país. A tradição dos acordos violentos, espúrios e às escuras é ainda muito intensa no Brasil e isso remete diretamente à ditadura. Se a gente lembrar da abertura política que começa a acontecer no final do período autoritário, ela aconteceu sob o comando dos militares, do mesmo grupo que comandava o regime anterior. E o primeiro governo da democracia foi eleito por um colégio eleitoral e chefiado por um representante do grupo que mais apoiou a ditadura. Reforço a lembrança do leitor: trata-se de José Sarney, atual presidente do Congresso Nacional, político que nunca saiu de cena. Tudo bem que houve uma confusão, porque o presidente eleito nem chegou a tomar posse, morreu antes disso. Mas os líderes da ditadura não deixaram que o sucessor por direito tomasse posse, obrigaram que um dos homens em quem mais confiavam assumisse a presidência da República.
Mas é curioso que essa marca de herdeiros da ditadura não pese negativamente no currículo de muitos políticos...
Porque aí a discussão é a respeito da manipulação da memória. A gente tem sempre de se perguntar qual é o uso que está sendo feito desses conceitos. Me parece que um dos usos é a própria coisificação da memória, um uso político, que favorece interesses, mas que não responsabiliza os criminosos, que não repara as perdas. Os dois últimos governos promoveram avanços, é inegável, mas ainda falta bastante a fazer. Porque é muito fácil colocar o nome dos desparecidos em ruas da periferia, em lugares pouco conhecidos, mas não há justificativa para não achar e devolver às famílias os corpos desses mesmos desparecidos.
O senhor está falando a respeito do uso político que se faz dessa memória. Parece que o livro O que resta da ditadura conseguiu justamente ultrapassar um desses entraves, que é a falta de ânimo de uma parte da população para encarar o problema. Da mesma forma como acontece com o feminismo, ou com os direitos humanos, as pessoas não raro parecem ter preguiça de discutir a ditadura e acabam atribuindo isso à mesmice das conversas, ou ao interesse escamoteado de conseguir uma indenização. É isso mesmo?
A gente chama isso de discurso da lamentação e a gente atribui essa postura à ignorância sobre o valor do feminismo, ou das lutas pelos direitos humanos, ou pelos direitos das mulheres. Quem não conhece, porque só foi apresentado ao pensamento superficial, cheio de preconceitos e de sonsos comuns, de fato não tem como confraternizar com essas lutas. Mas é para isso que servem obras como a nossa, que rompem com a superficialidade e desnudam aquilo que está enraizado na nossa alma e na nossa identidade, sem que a gente nem se dê conta. Estou falando da tolerância que temos com crimes como corrupção e tortura, por exemplo. Outra característica que tem ajudado o livro a ser bem conhecido e bem aceito em círculos antes fechados a essas discussões é o fato de ele não ser memorialista. Quem gosta de pregar o “faz tanto tempo, deixa pra lá, bola pra frente” não se comove com as memórias da época, mas pode se comover com um olhar atualizado para questões como as que a gente levantou.
Por fim, vocês buscam algo mais concreto com o livro? Exigem reparações? Cobram medidas?
A gente tem dito que, embora seja um livro que fale do passado, ele tem uma ação política no presente que visa o futuro. Somos sim favoráveis à instalação de uma comissão de justiça e verdade que apure e indique culpados, que traga à tona a verdade e que aponte possíveis punições sim. A comissão é importante porque seria uma instância para além do Estado, o que é fundamental para a transparência, a independência e a efetividade dos trabalhos, já que os governos passam, mas alguma estrutura do Estado sempre fica. E temos certeza da ação política, porque quem estuda segurança pública, por exemplo, terá uma enorme clareza quando entender que a tortura é um sintoma social do Brasil, como propõe a psicanalista Maria Rita Khel no seu artigo. Os assuntos tratados no livro nascem no passado, mas não se esgotam ali, a reflexão aponta para o presente e se projeta no futuro, no projeto que temos, ou devíamos ter, de nação.