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Entrevista com a antropóloga Karina Biondi - parte 1

Por que decidiu estudar o PCC? Como nasceu essa ideia e disposição?
Em 2003, eu cursava graduação em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Morava com meu marido e minha filha de 2 anos quando a polícia chegou à minha casa e levou meu marido, com um mandado de prisão provisória referente a um processo cuja existência, até então, nós desconhecíamos. Os meses seguintes foram bastante tumultuados, a ponto de eu me afastar da faculdade por um semestre. Retornei ao curso no segundo semestre e me matriculei em uma disciplina ministrada pelo professor José Guilherme Magnani, sobre Antropologia Urbana, na qual teríamos que fazer uma pesquisa de campo e entregar um relatório, como trabalho final da disciplina. O tema escolhido para pesquisar era livre. Meu marido seguia detido e eu o visitava aos finais de semana. Em uma dessas visitas, me veio o estalo: por que não fazer o trabalho sobre aquela prisão onde ele se encontrava? Conversei com o professor Magnani que, imediatamente, aprovou a idéia e me incentivou a continuar com essa pesquisa, mesmo depois de já ter entregado o trabalho final da disciplina. O produto dessa pesquisa recebeu o primeiro prêmio de Antropologia e Direitos Humanos para graduação, promovido pela Associação Brasileira de Antropologia e pela Fundação Ford, e foi publicado em uma coletânea da área. Isso me incentivou a fazer algo que, até então, era para mim impensável: tentar ingressar no mestrado. Fui reprovada na seleção da USP e, quando eu já achava que essa ideia era, na verdade, utópica e inviável, uma colega sugeriu que eu tentasse a seleção na Universidade Federal de São Carlos. Passei nas provas e fui muito bem recebida. Estou aqui até hoje, agora cursando doutorado, sob orientação do professor Jorge Mattar Villela, a quem devo toda a minha produção na pós-graduação.

De certa forma, você conseguiu superar obstáculos de acesso, por conta da prisão de seu marido. Pode falar sobre essa experiência? Como foi articular e equilibrar esses papeis de esposa e de pesquisadora?
Minha forma de inserção na pesquisa de campo é, sem dúvida, bem peculiar. Nenhuma das vezes que visitei meu marido eu estava somente fazendo pesquisa ou somente o visitando. Desde quando decidi transformar minhas idas aos presídios em pesquisa de campo, esses dois papeis se tornaram indissociáveis. Mas é impressionante como a forma de olhar as coisas muda quando estamos fazendo pesquisa; todas as leituras e exercícios que nos são apresentados na faculdade passam a ser acionados e uma porção de coisas que antes passavam despercebidas ganham destaque. E uma das importantes lições da Antropologia é sobre a ilusão da neutralidade do pesquisador ou da pesquisa. Ninguém que está em trabalho de campo é invisível ou deixa de ser avaliado e posicionado por seus nativos (é esse o nome que costumamos dar àqueles que estudamos). E muitas vezes esse movimento já diz bastante sobre essa população. Desde há um bom tempo, parte do trabalho dos antropólogos é dedicada justamente às relações que eles estabelecem com a população estudada.

Falando mais especificamente sobre seus estudos e sobre o livro, como nasceu o PCC em São Paulo? Com que propósitos? Quais as condições que favoreceram o surgimento do grupo?
Antes de entrar nesse assunto, gostaria de fazer algumas considerações sobre o lugar a partir do qual estou falando, que é o da Antropologia. Com isso, espero evitar alguns equívocos que aparecem quando os antropólogos falam sobre suas pesquisas. Embora existam divergentes escolas e linhas teóricas dentro da Antropologia, acho que a melhor definição de Antropologia foi feita por Lévi-Strauss. Ele afirma que a Antropologia se distingue por ser uma "ciência social do observado", em contraposição à "ciência social do observador", na qual podemos incluir, por exemplo, a Sociologia e a Ciência Política. Essa posição vem sendo levada às últimas consequências por autores que adoto em minhas preferências teórico-metodológicas. Nessa linha, toma-se por princípio que nenhum pesquisador é capaz de conhecer melhor a vida do nativo do que ele próprio. Assim, não existe um fundo de realidade que só o pesquisador seria capaz de acessar. Sua tarefa, nesse sentido, não é tentar extrair das populações que estuda os problemas que são dele, mas ver quais são as questões que elas próprias se colocam. Por isso, o que os nativos falam e fazem ganham estatuto de conhecimento, suas reflexões ganham estatuto de teorias. É claro que tudo isso é bem mais complicado e continua sendo objeto de grandes discussões dentro da Antropologia. Mas fiz essa exposição para que o leitor não se surpreenda quando as vozes dos prisioneiros forem por mim evocadas para explicar as questões colocadas na entrevista. O leitor não encontraria, nas minhas respostas, algo do tipo: eles dizem e fazem isso, mas, na verdade (eis outro conceito problematizado nas ciências sociais), o que acontece é aquilo. É porque, para mim, quem melhor conhece a realidade prisional não sou eu, são eles. Ademais, faço uma "ciência social do observado".
Posto tudo isso, vamos ao surgimento do PCC, do modo como os prisioneiros me relataram. O PCC nasceu na primeira metade da década de 1990. Nessa época, inúmeros bandos disputavam espaços no interior das prisões e, segundo relatos, o preso, além de sofrer pela sua condição de prisioneiro do Estado, sofria muito nas mãos dos outros presos. Para alguns deles, era preciso se unir para poder fazer frente ao Estado e evitar acontecimentos como o massacre do Carandiru que, em 1992, resultou na morte de 111 presos. Foi nesse contexto, para acabar com a opressão de um preso por outro e para se protegerem do Estado (pois diziam também serem vítimas constantes de tortura), que o PCC surgiu.

O Estado (poder público) fez pouco caso dessa movimentação inicial, o que teria facilitado o crescimento e enraizamento do PCC no sistema prisional?
O pouco caso é bem anterior ao nascimento do PCC. Talvez não fosse isso, o PCC nem tivesse surgido. Em seus primeiros anos de existência, ele era só mais um entre tantos bandos formados por prisioneiros. Embora sua proposta fosse sedutora para muitos prisioneiros que se juntaram a ele, sua expansão não se deu sem grande derramamento de sangue. Quando o PCC adquiriu alguma expressão, ele já estava consolidado.

Quais são os princípios de atuação do grupo?
São duas as principais orientações do PCC: "a paz entre ladrões" e a "guerra contra a polícia", onde o que chamam de "ladrão" nem sempre é sequer criminoso, e onde o que chamam de "polícia" também não se restringe às forças policiais. Essas definições não são estáticas; elas são avaliadas circunstancialmente. Mas esses dois projetos estão ligados às propostas presentes no surgimento do PCC: acabar com a opressão de um preso por outro e enfrentar as opressões das forças estatais. As formas para colocar essas orientações em prática são as mais diversas e mudam constantemente.

Qual o papel que o PCC cumpre nas prisões?
São dois os papeis que o PCC tem nas prisões. Em primeiro lugar, ele regula a relação entre os prisioneiros. Vou dar um exemplo bastante trivial. Em um Centro de Detenção Provisória, cerca de 40 presos dormem em celas que possuem apenas 12 camas. A forma como se distribuem nesse espaço está em diálogo com certa ética do PCC. Antes do PCC, aqueles que usavam de sua força física ou habilidades bélicas ganhavam seus espaços nas camas. Hoje qualquer agressão, física ou verbal, entre prisioneiros é repudiada. As batalhas, que antes derramavam sangue, hoje são, em sua maioria, discursivas (embora, em casos considerados extremos, alguns presos sejam executados por outros). Assim, passou-se a regular a ocupação dos espaços da cela por meio de definições que são frutos de debates e reflexões. Essas definições vivem mudando, mas até onde sei, cada cama é ocupada por dois presos e o critério para definir quem dorme na cama é o tempo ininterrupto de prisão. Em segundo lugar, o PCC é uma instância representativa da população carcerária frente ao corpo de funcionários das prisões. É esse o canal utilizado pelos presos para discutir as condições de revista dos visitantes, para criticar a qualidade da comida que recebem, para reivindicar mais tempo de banho de sol, ou para protestar contra o fechamento do registro de água. Continua

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