O que o faz tão forte e presente no sistema prisional paulista?
Os presos mais antigos dizem que as condições para cumprimento de pena melhoraram muito após o nascimento do PCC. Isto ajudaria a explicar o grande número de adesões que o PCC tem entre os prisioneiros. Mas sua força não seria a mesma sem a política de encarceramento em massa praticada pelo Governo do Estado e as condições de encarceramento dessa população.
Quais as diferenças essenciais entre a atuação e a filosofia do PCC e das facções criminosas cariocas, como o Comando Vermelho?
Ainda está por se fazer um estudo comparativo que leve em conta não somente dados estatísticos, mas a filosofia, a ética e a atuação das facções. Por enquanto, posso dizer que os prisioneiros do PCC afirmam que a "Igualdade", adicionada ao lema "Paz, Justiça e Liberdade" (usado pelo Comando Vermelho), é um dos grandes diferenciadores entre as facções.
Por que você diz que o ideal de "igualdade" é um desses elementos diferenciais?
A inserção da "igualdade" não se deu somente no lema. Ela impregnou as práticas do PCC e exigiu grandes transformações. A partir daí, a expressão "é de igual" passou a ser proferida frequentemente. Até presos estrangeiros, que não sabiam português, já falavam "é de igual" e conheciam sua funcionalidade. A questão que tratei anteriormente, sobre a distribuição dos presos na cela, sobre quem dorme na cama e quem dorme no chão, está também ligada à "igualdade". Primeiro porque, se são todos "iguais", ninguém pode mandar em ninguém. Em segundo lugar, porque nada é decidido isoladamente, sem debates, discussões e buscas por consenso.
Como se estabelece no PCC a questão das lideranças? Há hierarquias? Disputas de projetos? Brigas entre facções?
Com a adição da "igualdade", as relações de mando entre presos são abolidas e desestabiliza-se qualquer forma de liderança que exerceria poder sobre outros. Os "salves" (que não podemos confundir com ordem, pois estão mais próximos de uma orientação) são produtos de debates, reflexões e não decretos impostos. Aquela ideia de uma estrutura hierárquica piramidal não existe no PCC. O que existe são presos mais "reconhecidos" por outros, e tal reconhecimento se dá a partir de suas ações, de suas experiências. Esses não são os que mandam, são os mais respeitados e cuja opinião adquire importância nos debates justamente em função desse reconhecimento e respeito. Os projetos, sejam os mais ambiciosos, sejam os mais triviais, são todos debatidos, disputados. Afinal de contas, o consenso não existe por decreto e, como todas as decisões são colocadas em discussão, é inevitável que haja discordâncias e disputas por posições. Mas – atenção! - isso não quer dizer que se disputam posições hierárquicas. Justamente porque essa ideia de hierarquia não existe (o que existe é uma ideia de responsabilidade ou, como eles dizem, “responsa”). No entanto, nenhum regime político está imune a um golpe. Embora minha pesquisa não tenha revelado brigas entre facções internas ao PCC ou mesmo a existência dessas facções, nada impede que elas surjam e tentem implantar um regime hierárquico.
Qual foi o caldeirão de forças que permitiu a eclosão dos ataques, em maio de 2006? Como compreender aquele cenário?
Definitivamente os ataques foram provas de que o funcionamento do PCC não se deve a uma hierarquia piramidal, pois foi justamente após o isolamento do que as forças públicas conceituaram como "lideranças" é que os ataques eclodiram. De todas as versões que ouvi sobre como tudo aquilo aconteceu, a mais consistente com os dados da minha pesquisa foi a oferecida por Marcola, em seu depoimento à CPI do Tráfico de Armas. Segundo ele, o que aconteceu foi uma revolta generalizada e descontrolada por conta da transferência de centenas de prisioneiros às vésperas do dia das mães. Sempre após uma transferência, o preso fica em Regime de Observação, sem receber visitas durante determinado tempo, acho que 15 dias. Ou seja, todos aqueles presos não veriam suas mães no dia das mães. E não tem figura mais importante para o preso do que ela. Outra coisa mencionada foi a transferência de alguns deles para cadeias mais rígidas, de regime diferenciado, sem que eles tivessem cometido faltas que devessem ser punidas com essa transferência. Segundo Marcola, os presos começaram a entrar em contato entre eles e com pessoas que estavam na rua, e daí a situação fugiu do controle de qualquer um, já estava disseminada. Não podemos desconsiderar que a ação de transferência tenha sido uma tentativa do Estado de neutralizar alguma ação já planejada. Mas penso que as decisões tomadas foram desastrosas e tiveram efeitos contrários aos esperados. Isso justamente porque acreditam que o PCC tem um modelo de funcionamento espelhado no modelo do Estado, de base hierárquica; porque pensavam que, isolando-se os líderes, acabariam com qualquer ação.
Os ataques alcançaram mesmo aquele impacto? A cidade viveu uma situação-limite? Houve amplificação midiática na construção do medo coletivo?
Sem dúvida foi muito grande o impacto dos ataques. A despeito de qualquer amplificação midiática, não há como minimizar o acontecimento. Mas permita-me fazer um comentário. Embora desordenado, os ataques foram cirúrgicos. É inacreditável, mas a precisão chegou a ser maior do que os ataques cirúrgicos dos EUA no Iraque. De fato, os civis não estavam em perigo. Como o membro do PCC afirmou naquele vídeo exibido na Rede Globo como condição para soltura de um de seus repórteres, a guerra do PCC era contra o poder público, não contra a população civil. Mesmo as supostas ameaças às faculdades foram um tremendo mal entendido. Os presos chamam as cadeias de "faculdades". Um agente público que estava na escuta de uma conversa entre presos ouviu a seguinte frase: "vamos virar todas as faculdades". Com isso, queriam dizer que todos os presídios se rebelariam. No entanto, este agente começou a transmitir com urgência a informação de que as faculdades (para ele, instituições de ensino) seriam alvejadas. Isso sem dúvida contribuiu para a construção do medo coletivo, mas nesse caso não foi culpa da mídia, mas de um mal-entendido.
Naquele momento, o PCC colocou o Estado diante de um "xeque mate"? E como você analisa a atuação do governo estadual naquele episódio específico?
Foi uma situação muito constrangedora para o governo. Dentre todas as ações tomadas, a que eu consideraria mais eficaz foi aquela negada pelo governo: a negociação.
A política de truculência e de combate e enfrentamento apenas violento, muitas vezes adotada pelas autoridades, não acaba por conferir ainda mais legitimidade e reconhecimento ao PCC, nas cadeias e periferias de São Paulo?
Sem dúvida. No final de 2006, tive acesso a um "salve" que avalia os ataques como reações às provocações do Estado. O que chamam de provocações ali são os modos violentos de enfrentamento e as condições de cumprimento de pena. Essa política incita revolta, não só nos membros do PCC, mas naqueles que também se sentem atingidos por ela.
Qual a força e o tamanho que o PCC tem hoje?
De acordo com minha pesquisa, o PCC está presente na grande maioria das prisões paulistas, mesmo em unidades que, eventualmente, não contam com a presença de “irmãos” (seus membros batizados). Nas FEBENS também, até onde sei, existe PCC, mesmo sem a existência de menores "batizados". Eu ficaria surpresa ao saber que algum deles tem conhecimento do número exato de membros, já que um “irmão” sequer conhece todos os seus outros “irmãos”. O PCC, como procuro descrever em meu livro, não se restringe à soma de “irmãos”; é um fenômeno muito mais amplo, complexo e, sobretudo, múltiplo. Por isso imensurável.
O Estado conseguiu de fato "esmagar" o grupo, como foi dito à época dos ataques, em 2006?
De jeito nenhum. O PCC está em funcionamento tal como estava antes dos ataques.
Em retrospectiva, se você olhar para o início e para o cenário atual do PCC, quais as mudanças e acomodações que nota no grupo?
Sem contar com a fase das guerras e expansão do PCC, a principal mudança foi a adição da "igualdade" ao lema, que implicou em uma mudança no regime político do PCC. É importante esclarecer que não estou falando de política partidária, mas utilizo o termo política aqui de forma mais ampla, para me referir ao modo como os prisioneiros conduzem suas existências e suas lutas. Mas eu gostaria de reiterar uma coisa: no PCC, as coisas só acontecem na medida em que vão acontecendo. Não há teleologia. Tudo está em constante transformação, negociação, discussão.