Tese revela mecanismos que fazem de pré-adolescentes reféns do consumismo - parte 2
Descobertas
A pesquisadora preferiu chamar as conclusões de sua tese de descobertas, porque levantou pressupostos na pesquisa em que o mundo globalizado estava realmente interferindo no modus vivendi das crianças, independentemente do nível socioeconômico. O que ela descobriu? Que os pressupostos estão se confirmando. E mais: as semelhanças na identidade e homogeneidade dos comportamentos provocam uma desigualdade cruel porque os envolvidos não possuem as mesmas chances para se adaptarem ao mundo globalizado. “Os de nível socioeconômico mais alto possuem oportunidades de desenvolver estratégias mais adequadas do que os de outros níveis.”
Como todas as crianças têm acesso à mídia, afirma ela, a qualidade desses acessos provoca profundas mudanças no seu comportamento. “Uma criança tem um tênis caro. Eu não tenho. Só que todo o contexto daquilo que assisto na televisão, do que meus colegas vivenciam na escola, do que eu vejo na rua sugerem que eu deveria ter uma identidade tal como aquela. Então preciso ser como outras pessoas para ser aceito. Se eu não tenho isso, então não sou ninguém. Vivo à margem”, descreve a pesquisadora, ressalvando que isso não foi estudo e sim fruto de uma observação empírica, o que não deve ser ignorado, por ter o seu valor prático.
Mas o pior para Fermiano é o fato de a própria criança se sentir à margem porque não tem x, nem y. “E é esse o sentimento que percebemos, posto que toda a estrutura da socialização econômica está relacionada com os aspectos afetivos, sociais, econômicos e o estabelecimento de significações pela criança. Existem vários problemas neste sentido”.
O que fazer com este tween que está na escola, se a escola não está alfabetizada economicamente para orientá-lo? Até então, nunca foi tema de disciplina, isso porque o contexto que se vivia não solicitava destrezas econômicas. Hoje, ao contrário, o contexto de globalização solicita novas alfabetizações: a digital, a política e a econômica. Esta necessidade, conforme a pedagoga, se reveste de atualidade e envolve a família que dá dinheiro para a criança e outros agentes de socialização. “Ela dá um pouquinho hoje. Amanhã dá outro tantinho. Além disso, nem sabe o quanto dá para o filho e nem tem limite. Isso é uma estratégia de alfabetização econômica muito ruim”, critica Fermiano.
Os estudos do grupo de pesquisa Educação Econômica, do Laboratório de Psicologia Genética (LPG) da FE, demonstram que uma família financeiramente desorganizada, que não consegue se controlar, gasta mais do que pode comprar. Como educar economicamente um filho se nem os pais receberam esta educação? Esta é outra descoberta, aliás: “que essas crianças vivenciam um ambiente em que as novas alfabetizações digitais, econômicas e midiáticas não fazem parte do contexto familiar”. Inevitavelmente esta responsabilidade pode recair sobre a escola.
Fermiano lança a proposta de uma educação econômica para que o professor conheça melhor esta faixa etária, as suas características e quais são os conceitos e conteúdos da economia e análise midiática que poderiam conhecer para trabalhar com a criança. “Podemos, por exemplo, incentivá-la a trabalhar com a prática da solidariedade”, frisa. Em seu estudo, os alunos entrevistados não deram mostras de conhecer o conceito do que é doação. Para eles, doar é somente dar dinheiro. “Não sabem o que é serem generosos, solidários e cooperativos com uma situação que assim o requeira. A doação deve ser incentivada dentro de um propósito de entender a necessidade do outro.”
Um problema identificado pela pesquisadora: “os tweens gostam muito de ter bens e acumulam muito ‘lixo’ em casa”. Na escola, a questão do meio ambiente é elaborada. Às vezes estas informações atingem um nível macro: “preciso economizar energia, reciclar papel e dar destino ao óleo já usado para preservar o meio ambiente”. A escola não trabalha com ações individuais e ecológica e economicamente corretas, verifica a pedagoga. Uma saída, propõe, é fazer uma feira com as crianças em que elas possam trocar ou vender, ou mesmo doar as coisas que não usam mais. Trata-se de criar ressignificações e tomada de consciência de ações que podem fazer a diferença para si, para os outros e para o mundo.
A pesquisadora declara ainda que esta tese a confrontou em muitos sentidos, como mãe de dois filhos na faixa etária estudada, como mulher casada e o fato de estar diante de um novo contexto que exige conhecimento e atitudes que necessitam serem construídas no dia a dia. A seu ver, os tweens têm tudo para se tornarem adultos sem noção dos seus atos, até em termos de violência. Alguns estudos, reporta ela, têm demonstrado que a violência entre estes jovens aumentou muito por conta das diversas identidades assumidas e por serem intolerantes com outros grupos que não o seu próprio. Enfatiza que eles começam a demarcar terreno na sexta, sétima e oitava séries: “eles querem se autoafirmar”. E acabam formando pequenos grupos, seus guetos, com manifestação de intolerância.
“Percebemos que as nossas crianças precisam de um período de adaptação. Com um quadro agravado pela época em que vivemos, com muitas solicitações, elas não têm tempo para a reflexão e para um crescimento saudável”, avalia a pedagoga. No questionário, perguntou o que mais essas crianças queriam mudar nas suas famílias. Disseram que queriam passar mais tempo com elas. Isso denota, no entendimento de Fermiano, uma necessidade de destinar um tempo para conversar e discutir perspectivas, interesses e opiniões. “E esse tempo lamentavelmente não existe dentro dos lares”, lamenta.
Para a pedagoga, a escola “não deve salvar a pátria”. Porém é inegável o seu importante papel. “Essa escola que estamos falando, que procura contextualizar o outro a partir das características da criança, ainda prossegue em lenta construção. É um processo de formação do professor e do pai diante dessa nova criança. É notório que essa criança é muito diferente daquela que nós fomos”, reconhece.
Descompassos vêm à tona
O perfil dos tweens resultante da tese aponta que essas crianças são muito ativas, gostam de novidades, sabem muito bem o que desejam comprar, apreciam estar com os amigos, permanecem pouco tempo com a família e entendem completamente a programação da televisão, distinguindo o que é comercial daquilo que é programa. Porém, eles não conseguem distinguir as intenções das mensagens.
Em contrapartida, lidam sempre com dinheiro, mas não têm noção de valores, não conhecem como funciona o comércio, o que é lucro. Querem o produto na loja, porque lá podem pegá-lo e olhá-lo concretamente, ao passo que não sabem comparar preços, qualidade e as ofertas das diferentes lojas.
A estrutura cognitiva dos tweens, comenta a pesquisadora, não é capaz de dar conta das variáveis que fazem parte da economia. Eles preferem então se ater ao que os amigos falam e não são levados a pesquisar preço pela família, mesmo porque nem sempre a família faz isso. Verificou-se ainda no trabalho que os tweens se adaptam rapidamente às solicitações do meio (mudanças inclusive).
É de se esperar que os tweens, como caminham à frente em muito pontos, também exibam uma melhor performance na escola. Não é o caso, de acordo com Fermiano. Apesar de a escola ministrar conteúdo, essas crianças lidam com muitas informações ao mesmo tempo. Elas assistem ao Discovery Channel e a uma série de programas, no entanto não conseguem fazer relações adequadas desse conteúdo com o que é aprendido na escola. Os dados da sua pesquisa indicaram que o “mais legal” na escola é o recreio, além dos amigos. Parece haver um descompasso na relação, sustenta Fermiano.
A pesquisadora define que essa dificuldade reside no distanciamento de realidades. “Estamos em mundos muito distantes do nosso tween, da escola, da família, da sociedade, o que é muito grave. Quando observei pesquisas de marketing, percebi que elas adentram as casas das crianças para verem o que fazem no seu cotidiano. Organizam até grupos focais para discutir com elas as suas preferências antes de lançarem produtos”, informa.
Uma das estratégias adotadas por essas empresas, prossegue a pedagoga, é selecionar líderes de uma dada escola para saber o que os outros amiguinhos veem de interessante nele. Está em voga a questão da identidade. “Não existe a compreensão do processo. Vejo que isso é muito prejudicial para a formação das crianças e para um consumo consciente, já que os recursos naturais são finitos.”
Ao abordar as diferenças entre os tweens e os tenager, Fermiano notou que o tenager (adolescente) é mais amadurecido, sexualmente e fisicamente falando. Ele tem estados de humor mais tendentes a oscilações. Possuem uma visão mais crítica de mundo e conseguem fazer relações maiores. O tween ainda está na vigência da infância, embora não admitindo. Em casa, o menino tween joga bolinha, faz coleção de carrinhos e tem muitos brinquedos. “Quando vai para a escola, não conta para ninguém que faz isso. Vive uma vida dupla, ao mesmo tempo que na escola procura seguir um comportamento adolescente, porque está se mirando em algum tenager. Em casa, continuará brincando como uma criança, pois é isso que ele é: uma criança”, revela.
Com a menina é a mesma coisa, confirma ela. Na escola, passa batom, quer ficar bonita e se projetar naquela garota mais velha que conhece. Já em casa, brinca de boneca. E não é somente isso. Pelos questionários respondidos, percebeu-se que a atitude que mais irrita a criança que tem oito, nove anos, em relação ao adulto, é ser tratada como criança.
Essas mudanças de comportamento colaboraram para que Fermiano percebesse a necessidade de trabalhar esses valores com a criança e com as suas questões de identidade: “posso ser eu sem me preocupar com o que o outro é”. Ademais, a pedagoga estimula um planejamento econômico (seja de poupar ou conhecer minimamente o mercado). Mesada ou semanada têm se mostrado boas opções para ministrar o “abecê” aos filhos e, sendo regulares, ajudam muito a criança a se organizar e a ter noção do dinheiro. A pesquisadora também incentiva a discussão dos programas e dos comerciais com as crianças.