SINPRO-SP – Professor, qual é o olhar que deve ser lançado sobre a Alemanha unificada, 20 anos depois da reintegração?
Primeiro a gente não pode esquecer os antecedentes que levaram à queda do Muro de Berlim e, logo depois, à unificação mesmo. A queda do Muro foi um episódio histórico, claro, mas um fato simbólico, com a força e os problemas que os símbolos têm. Ela ajuda a marcar não apenas a queda de um modelo alemão, mas de um modelo europeu, com muitos significados e repercussões para o mundo todo.
O historiador Eric Hobsbawm afirma inclusive que a queda do Muro marca o fim do século XX. Para ele, o século começa em 1914, com a I Guerra, ou em 1917, com a Revolução Russa, e termina em 1989, com a queda do Muro...
Eu discordo um pouco dessa visão, porque ela olha apenas para o Ocidente e para o hemisfério norte, não leva em conta acontecimentos simbólicos de outros lugares do planeta. Mas Hobsbawm está certo no que diz respeito à força desses símbolos para o século XX.
O senhor poderia resgatar alguns dos acontecimentos que levaram à queda do Muro e posteriormente à unificação?
Acho muito importante a gente sempre ter esse encadeamento e os contextos em mente na hora de entender um episódio. Desde o início da década de 1980, o contexto europeu estava favorecendo o crescimento da ideologia liberal, que prega, em linhas gerais, que o Estado não interfira na economia, que os mercados se auto-regulem e que o Estado seja bem minguado. Esse pensamento esteve sob a batuta do chanceler alemão Helmut Kohl. Democrata-cristão e conservador, Kohl fez o liberalismo alemão se fortalecer. Alinhado com a primeira-ministra britânica Margareth Thatcher e com o presidente norte-americano Ronald Reagan, Kohl foi preparando o processo para a queda do Muro.
O senhor alertou que símbolos também podem ser problemáticos. Por quê?
Porque ao mesmo tempo que revela e sintetiza muita coisa, ele também esconde. No caso da queda do Muro, focar só na destruição daquela construção e na livre passagem de alemães de um lado para o outro pode esconder, por exemplo, as dimensões políticas e econômicas desse processo. O que ele esconde também? Que é o resultado (e não o ponto inicial) de um processo que percorreu toda a década de 1980 e mostrou a força do liberalismo de Thatcher e Reagan, como já disse antes. Mas tem mais um ponto, pouco dito, quase esquecido, que faz diferença. Quando o Muro cai e, portanto, o sistema socialista rui na Alemanha, a União Soviética poderia ter invadido o país. Tudo bem que o “se” não faz História, mas se tivesse havido uma invasão, as coisas seriam diferentes hoje. Mas mais importante do que a não invasão são as razões para essa afronta não ter acontecido.
E quais são?
Basicamente a atuação do presidente da antiga URSS, Mikhail Gorbatchov, que desde o início dos anos 1980 vinha liderando um processo de abertura econômica, a perestroika, e outro, de abertura política, a glasnost. E eu explico nessa ordem porque elas foram tocadas nessa ordem mesmo. Primeiro, Gorbatchov tratou de aliviar tensões internas, abrindo os mercados e parando de gastar rios de dinheiro na corrida espacial – idealizada por Ronald Reagan e aceita pela União Soviética como prova de poderio militar. Em termos externos, o estadista soviético conseguiu maior aproximação com a França, com a Inglaterra, a Itália e até com os Estados Unidos. Como consequência, Gorbatchov vai abrindo lentamente a política e, assim, resolve não atacar a Alemanha no momento em que cai o Muro. Na época, a tensão de uma possível invasão existia, mas não se concretizou.
É possível afirmar que a unificação aconteceu de fato? Há relatos de regiões ainda com problemas para entrar no ritmo e de certo mal-estar com os orientais...
A Alemanha Ocidental sempre teve maior poder econômico, então quem ditou as regras do que seria o novo país foi o lado capitalista. Comparando com o que existia em 1989, posso afirmar que a unificação aconteceu mesmo, em termos econômicos, populacionais e geográficos, embora continue evoluindo. Os orientais sentiam o Muro como uma violência, foi um presente se reunificar. Ainda resiste certa heterogeneidade na população, mas entre os alemães não há repulsa declarada aos próprios germânicos. Eles se consideram um único povo e uma única nação. Também há certas dificuldades em relação aos trabalhadores orientais, que nem sempre conseguem emprego facilmente, mais por uma questão de localização (tem menos indústrias do lado oriental) que por um sentimento de estranhamento dos ocidentais.
E eles se unem então contra os estrangeiros?
Na verdade, a xenofobia está presente em toda a Europa, não é mais acentuada na Alemanha que em outros países. Aliás, lá, a tendência é estabilizar. Acho que a situação da França, por exemplo, chama mais atenção.
O Muro cai, a Alemanha se reunifica. Internamente já vimos em que pé está o processo. Mas e em termos internacionais, quais são as consequências desses processos?
Os anos de 1989 e 1990 foram marcos sinalizadores do fim da Guerra Fria, que perturbou boa parte do século XX. Com a certeza de que o mundo já não mais se dividia em dois grandes blocos antagônicos, capitalistas de um lado e socialistas do outro, ambos buscando a hegemonia mundial, a população do mundo pôde perceber que nascia um novo momento global. E o que a Europa é hoje certamente se deve a o que aconteceu na Alemanha de 1989.
Mas naquele tempo se dizia que a Alemanha viraria a grande líder da Europa, talvez o país mais importante do mundo. E parece que isso não se concretizou...
Há 20 anos estávamos mais próximos do 3º Reich que hoje, ou seja, ainda havia no ar muito receio que a Alemanha, reunificada, resolvesse requentar o pangermanismo. Tudo indica que essa previsão de grandiosidade alemã era mais uma supervalorização das possibilidades do país. Agora, objetivamente, a Alemanha é uma potência, em todos os sentidos, e está à frente da França, da Inglaterra. E não podemos dizer ainda que ela seja uma liderança europeia, mas o grande teste virá quando o país puder ter de novo Forças Armadas bem organizadas e com muitos homens. Aí talvez o mundo passe a ter medo sim. Pessoas mais velhas, quando vêem soldados alemães servindo na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e combatendo em Kossovo, se assustam, se preocupam, ainda por reflexo do terror que a ideia de um exército alemão ainda provoca.
É como se o temor do nazismo nunca se apagasse de vez...
Porque não se extinguiu mesmo. O estado alemão é muito sério, estável, confiável. Mas há na política alemã uma ala da extrema direita que flerta com o neonazismo. Por isso mesmo, os governos fazem vistas grossas às ideias e aos grupamentos nazistas que permanecem vivos. Mas essa é uma situação de toda a Europa, a repulsa aos diferentes vem ganhando muita força, principalmente por conta do apoio ou da omissão dos governos. O caso mais recente é a expulsão de ciganos da França de Sarkozy. Na Alemanha, Itália, França, Holanda e Dinamarca a rejeição ao Islã é algo realmente sério, principalmente porque se apoia no nacionalismo exagerado que convém aos governos.
E para aonde caminha a Alemanha?
Vai continuar nessa espécie de “slow power”, como o Japão, até que reconquiste o direito de ter Forças Armadas. Nesta situação, a Alemanha mudará de status. Até lá, a potência é respeitada pela estabilidade social, política e econômica. As populações das duas Alemanhas sentem-se um único povo, politicamente o país nunca titubeia, ou seja, decisão tomada é decisão cumprida, e isso tem peso internacionalmente. Por fim, a economia vem se mantendo muito estável, apesar da crise do ano passado e de outros pequenos abalos da economia global. Também é preciso destacar a ação modernizadora que a Alemanha assumiu e que vem tocando seriamente. O Estado é moderno, a política é modernizadora, as divergências com os Estados Unidos são bem amadurecidas. Sob o governo de Angela Merkel, a Alemanha é – como sempre foi – um país que sabe para onde vai e que o mundo reconhece como um país que sabe para onde vai.