Professor, tivemos manifestações de colunistas de jornais defendendo que Bolsonaro pode vir a público dizer o que pensa e sem ser punido, porque todos os brasileiros estão amparados pelo artigo 5º da Constituição, que garante a liberdade de expressão aos brasileiros. O senhor concorda essas manifestações?
No caso do deputado Bolsonaro, o nó não é a liberdade de expressão propriamente dita. Se ele fosse um cidadão comum que viesse a público – pior ainda se fosse pela TV – dizer o que ele disse, esse cidadão poderia ser julgado e até condenado, porque racismo é crime inafiançável e imprescritível, e a homofobia atenta contra direitos assegurados pela Constituição. Então a pessoa pode até dizer, mas tem de arcar com as consequências do que disse. No caso do capitão Jair Bolsonaro, ele é um deputado federal e tem, portanto, imunidade parlamentar. O princípio da imunidade é louvável e protege o parlamentar dos desmandos de um governante tirânico, por exemplo. O princípio determina que deputados, senadores e vereadores só possam ser julgados por seus pares e não pela justiça comum. O que não significa defender que o deputado Bolsonaro não deva sofrer as consequências de uma declaração como a que ele fez em rede nacional. É sem nenhuma dúvida um caso de quebra de decoro parlamentar e os outros deputados podem sim investigar e até retirar o mandato.
Mas existem outros casos – como o daquele pastor norte-americano que queimou o Alcorão e pregou contra o Islã – que também são defendidos com base na liberdade de expressão. Mesmo sendo nos Estados Unidos, que possui outra legislação, o argumento foi semelhante.
A liberdade de expressão é um dos diretos assegurados pelo Artigo 5º da Constituição Federal. Ele está imerso numa família de direitos chamados fundamentais, ao lado de outros que protegem, por exemplo, a honra, a imagem e a vida privada das pessoas. São os direitos individuais e coletivos. No caput do artigo, ou seja, no início do texto, está escrito que todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, seja raça, religião ou orientação sexual. A liberdade de expressão se insere nesse contexto, junto dos demais direitos que compõem essa família. O intuito desse grupo é garantir que todos os grupos vivam em equilíbrio e harmonia sem que um sufoque o outro. Por isso a liberdade de expressão não pode ser usada como escudo para defender quem atenta contra a honra, a vida privada, as escolhas do outro. Os crimes de calúnia, injúria e difamação são um bom exemplo disso. Da mesma forma, o direito à liberdade de expressão não exime o sujeito que pratica qualquer desses crimes das consequências legais que eles acarretam. Ela existe em harmonia com os demais direitos do artigo 5º, nunca contra ou sobre eles.
Mas parece que a desculpa da liberdade de expressão acaba sendo um escudo para postura nada desejáveis, como a homofobia e o racismo. O discurso parece pegar bem.
É uma explicação manca. Ela vai até a parte do direito, mas não chega ao dever. Quem comete crime deve sofrer as consequências desses atos, aquelas previstas na lei. Se for um cidadão comum, será julgado pela justiça comum. Se for parlamentar, o processo fica por conta dos pares. O que choca no caso Bolsonaro é o desprezo pela ordem constituída vigente. A gente sabe que ele é um deputado performático, com uma agenda própria e com ações de palanque, até para conseguir se manter na mídia e seguir se reelegendo. Mas, mesmo sendo parlamentar, não tem o direito de ser racista ou de expressar seu racismo. Declarações como as que ele fez têm consequências previstas em lei, ninguém está livre de suportar as consequências de seus atos. E a ideia da liberdade de expressão também pega porque a sociedade nem sempre sabe que esse princípio não se presta a acobertar crimes. Presta-se a garantir a livre expressão de pensamentos e ideias, respeitando-se, claro, a harmonia com os outros direitos do artigo 5º, que nós já falamos.
Ou seja, para ficar bem claro: o direito à liberdade de expressão não dá a ninguém o direito de ser racista.
Exatamente. Nem o direito de acreditar que algumas características físicas são superiores a outras, nem o de expressar isso sem as devidas respostas. Isso porque para se viver em sociedade, é preciso leis, regras e limites. O Direito tira o ser humano do estado da barbárie e constrói o que chamamos de civilização, que é um estado de contenção. Não tem jeito. Sem isso a gente volta para a barbárie. Por isso existem ideias que devem ser combatidas e, quando ainda assim prosperam, podem ser punidas.
Esse discurso da liberdade de expressão lembra, de alguma maneira, o discurso da censura usado pelos veículos de comunicação. Basta a sociedade civil se posicionar contra algum conteúdo do jornal, revista, ou emissora, que logo alguém saca o discurso da censura. O senhor enxerga um paralelo?
Hoje em dia, o uso da expressão censura é deturpado e tem servido para superar o discurso dos empresários da comunicação quando a sociedade civil toma medidas contra os veículos. A palavra, que tem finalidades específicas, vem sendo usada para defender interesses comerciais.
A gente pode dizer que tanto o mau uso da palavra censura quanto a deturpação da ideia da liberdade de expressão são ainda resquícios da ditadura? Quero dizer, pega bem falar de censura e liberdade de expressão porque mostra o quanto se é democrático, o quanto se repulsa o autoritarismo?
Pode ser entendido assim mesmo, é uma possibilidade. Mas acho também que é um uso esperto, que adere à conveniência dos negócios de empresários, que não querem ser disciplinados por nenhum mecanismo. E a liberdade de expressão é um suposto álibi para quem não quer ser punido por opiniões controversas, por exemplo. Mas a gente tem de lembrar que existem os crimes com armas de fogo, com armas brancas e com outro tipo de arma também. A palavra é arma e pode ferir ou matar até mais que as armas que citei antes. Ninguém é impune.
E por que a sociedade topa essas duas posturas?
Porque uma lei para pegar mesmo precisa se amparar no vigor da cidadania. Alguém para ser processado por discriminação racial, por exemplo, precisa ter passado por denúncia de quem se sentiu vítima de discriminação. A lei não é naturalmente aderente. É preciso mobilização da sociedade, força dos cidadãos. Acontece que dá trabalho, aí a gente cai no falso discurso da censura e da liberdade de expressão como biombo para todas as pregações bem ou mal intencionadas. Mobilizar dá trabalho porque o cidadão cai na burocracia do Estado, tem de se expor e etc. Mas às vezes, ficar calado dá mais trabalho ainda. A humilhação faz a pessoa se deprimir, ter problemas de saúde física e mental. Então é uma opção com resultados desgastantes também.
E é possível trazer todo esse debate para a sala de aula?
É possível sim. Em todas as aulas, em todos os cursos, em todos os níveis, desde a pré-escola. Porque a sala de aula não é só o espaço em que o professor despeja as informações para os alunos. É antes um espaço de reflexão e de construção do conhecimento, onde a ciência está em pauta, assim como as atualidades. Ou seja, o que acontece na vida lá fora traz elementos para a sala de aula, que não é um espaço separado do mundo. E tem mais, nem sempre a família e os grupos sociais por onde o estudante passa são espaços dados à reflexão, ao pensamento. Pelo menos não à reflexão múltipla, equilibrada, ponderada, baseada em argumentos. A escola é um lugar privilegiado porque é espaço de construção de conhecimento (onde ideias podem ser debatidas, contestadas, reformuladas, descobertas); é um espaço coletivo (por isso ali há troca de ideias, de experiências e de trajetórias); e , por fim, é um lugar de convivência social, geracional, do diferente.
E o professor nesse processo todo?
O professor tem de estar preparado e disposto para trazer os temas de lá de fora. O papel dele é propor a discussão, mediar o debate e jamais se colocar como um pano de fundo. O professor é e pode ser o proponente da direção segura por onde os alunos podem seguir. A direção da correção, do pensamento embasado, da adequação dos problemas à vida em sociedade, ele não deve se furtar a esse papel. O Brasil tem uma tradição antiga em relação ao Direito. Nossas premissas são baseadas no Direito Romano e no Direito Germânico, o que significa dizer que faz muito tempo que estamos construindo o Direito sobre o qual depositamos nossas decisões. Seria muito bom se os professores de todos os ciclos tivessem esse conhecimento e pudessem passar aos alunos que nossos direitos não começaram em 1988, com a Constituição Federal. Ele vem de muito antes e muita gente morreu, lutou, foi combatida para que a gente chegasse a essa forma que temos hoje. A Constituição brasileira é chamada, não à toa, de Constituição Cidadã, porque teve ampla participação popular, não é uma Lei de gabinete, ao contrário. E as escolas do Brasil precisam fazer uma revisão dessa trajetória e recontar esse percurso, valorizando cada uma dessas conquistas, que consumiram tempo, luta e até vidas para alcançar esse estágio.