O golpe militar completa 40 anos. Voltemos àquele dia, àqueles dias. Como os professores reagiram diante da tomada do poder pelos militares?
Bem, naquele momento não houve um posicionamento único e oficial. Aconteceram sim transformações na categoria e na educação, ao longo do tempo.
Quais foram essas transformações?
Em 1961, entrou em vigor a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB). E foi um processo amplamente democrático. Cada resolução da lei foi conversada, debatida, esmiuçada. Em 1971, já no meio da ditadura, é aprovada a segunda LDB. Ela traz uma série de mudanças, como a substituição das disciplinas de História e Geografia do currículo escolar por Estudos Sociais, do 1o ao 3o grau. Existiu até faculdade de Estudos Sociais. Outra grande mudança foi a introdução do ensino profissionalizante no antigo 2o grau. O que, para nós, representa o início da falência do ensino e sua relação com os vestibulares. Nos anos 60, as escolas públicas eram boas e levavam seus alunos à universidade pública. Mas não havia vagas para todos nessas escolas. Vamos lembrar. Não era como hoje um blocão de 8 anos no ensino fundamental. O sistema educacional era dividido assim: os primeiros quatro anos eram chamados de primário, que dava um diploma. Os demais quatro anos atendiam por ginásio, que dava outro diploma. Depois, tínhamos mais três anos de colegial, que era dividido em clássico, científico, ou normal. Na passagem da 4a. para a 5a série, havia um minivestibular, o chamado Exame de Admissão, para que o aluno entrasse no ginasial. Isso já selecionava bastante. E os exames iam se repetindo, até o vestibular.
As mudanças ocorridas trouxeram quais prejuízos?
Essas mudanças todas têm sim um lado positivo, se é que podemos dizer assim. Ao acabar com o Admissão e fazer do ensino fundamental, então primário, um bloco único, o governo permitiu um enorme acesso de toda a população à escola. Fato que não era muito comum. A escola pública era tão boa que só os bons ficavam. O lado ruim é que as escolas não estavam preparadas. Não abriram vagas suficientes no 3o grau e isso é o que traz a proliferação das escolas privadas. Esse problema vem daquele tempo e continua até hoje. Nunca foi resolvido. Aliás, o governo tenta resolver de maneira errada, comprando 25% das vagas das escolas privadas, quando o certo seria garantir educação de tão boa qualidade que levaria o estudante à universidade pública.
Falando em Universidade, em 1968 aconteceu a famosa Reforma Universitária…
Em 1968, houve a Reforma Universitária. O que ela fez? Mudou o perfil da universidade, até do conceito de universidade. Se antes universidade remetia a universo, com pequenas constelações, mas fazendo parte de um todo, de um universo único, com a Reforma as instituições passaram a ser divididas em departamentos. Pouco a pouco, esses departamentos vão se isolando, até ficarem incomunicáveis. A departamentalização transforma a universidade em partes estanques, e esse é um de seus efeitos mais perversos.
Qual era o intuito real dessa reforma? O que estava por trás desse movimento?
Os acordos MEC-Usaid [acordo entre o Ministério da Educação do Brasil com o Departamento de Educação dos Estados Unidos, que reformou o ensino secundário e universitário, transformando-os em cursos mais curtos e técnicos profissionalizantes], que aconteceram ao longo de toda a década de 60, eram uma leitura norte americana de educação. A idéia é ter um ensino profissionalizante e aligeirado, rápido, mais curto. Tanto no 2o grau, quanto no 3o. Os cursos de licenciatura, por exemplo, ganharam duas versões: a licenciatura curta e a profissionalizante, que durava cerca de dois anos. Um absurdo. E a outra, mais aprofundada e que se destinaria à pesquisa e encaminhava para mestrado e doutourado, que chamamos de plena, com pouco mais de três anos. Além disso, como eu já disse, as faculdades de História e Geografia foram substituídas por faculdades de Estudos Sociais. Com exceção da USP e da PUC, todas as outras faculdades mudaram seus cursos. A licenciatura plena existe até hoje, mas estamos conseguindo aumentar sua carga horária para quatro anos.
Mais tarde, no entanto, a licenciatura curta deixa de existir. Como isso aconteceu? De quem foi essa luta?
Ah! Sem dúvida foi uma conquista dos professores. Foi uma luta ao longo dos anos 70 e conseguimos derrubar o absurdo que era a licenciatura curta. Foi uma luta dos professores universitários. Era um momento em que a universidade pública falava diretamente à sociedade, estávamos muito afinados com a sociedade. E aí conseguimos essa vitória.
Durante o período da ditadura, houve movimentos e passagens de resistência muito marcantes e bonitos, liderados pelos professores. A senhora pode falar um pouco disso?
Vamos começar nos anos 60. Nesse período, um professor ginasial tinha carga máxima de 12 horas por semana e um salário equivalente ao do juiz da cidade. O professor era uma espécie de autoridade moral, como o padre, o delegado e o juiz. A carga horária e o salário eram muito bons. Com eles dava para se preparar, preparar as aulas com cuidado, corrigir trabalhos e provas e essas coisas. O regime militar chega e massifica a educação – aquilo que já falamos, abre os portões para a população -, mas não contrata mais professores. Aí amplia as jornadas para compensar. E a carga que era de 12 horas aula por semana passa a ser de 44 horas. Dentro da sala de aula! Quem é que consegue se preparar com essa jornada? Então a educação começa a decair. Nos anos 70, paralelamente ao aumento na jornada, vem o rebaixamento salarial deliberado. Começa aí um processo de perdas irreparáveis. Nos salários, no prestígio e na qualidade do ensino. Em 1978, acontece a primeira greve de professores e, a partir daí, uma seqüência de outras greves. Mas esses movimentos todos já traziam o mote que se repete até hoje: os professores não brigam por aumento salarial, mas por reposição das perdas. Nesse tempo, a Apeoesp [Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo] já era um sindicato forte, mas tinha um caráter muito assistencial. Os professores a procuravam para resolver questões jurídicas, ou para procurar uma colônia de férias. Em 78, nós, professores declaramos greve à revelia da Apeoesp e, em 1979, o novo movimento invade e toma, literalmente, o sindicato. O resultado é que Apeoesp se torna o sindicato mais combativo e também o maior em número de filiados. E até hoje é um dos maiores, se não o maior.
Mas, junto com as conquistas, se estabelece um processo de desvalorização do professor, não?
É. O professor vai sendo desvalorizado pouco a pouco. As perdas de salário e de prestígio da carreira vão marcando toda a ditadura. Esse desmerecimento provocou até uma mudança de sexo do professorado. Antes existiam professores homens e mulheres. Depois do achatamento do salário, só mulheres podiam ser professoras. O salário muito curto não seria suficiente para sustentar uma casa. Os homens, esteios do lar, não poderiam ganhar tão pouco. Escolas públicas, então, perdem a qualidade, o que dá espaço para as privadas. Agora, as privadas é que têm um ensino de qualidade. No caso do ensino superior, não. As públicas permanecem como exemplo de ensino bom, mas os vestibulares delas são gargalos, o que impulsiona as faculdades particulares. Vamos pensar: se os mais pobres não podem pagar para estudar, vão às escolas públicas, que dão uma formação precária. No futuro, esses mesmos alunos não vão conseguir entrar nas universidades públicas e vão encher mais ainda as salas das particulares. Mais ainda: quais são os cursos universitários mais baratos? Justamente o de formação de professores como História, Geografia, Pedagogia… É nesses cursos que os alunos de baixa renda – que já tiveram uma formação deficitária – vão ingressar, porque é o que eles podem pagar. Percebe como tudo vai contribuindo para um professor mal formado? Baixos salários, baixo prestígio e também uma formação precária.
Pode-se dizer que esse processo de desvalorização do professor, que teve início na ditadura militar, foi deliberado, para combater um dos principais focos de resistência ao regime?
Foi sim um processo deliberado, gestado no Regime Militar. Vejá só. Por que destruir as carreiras de História e Geografia? Porque todo o pensamento crítico passa por essas duas disciplinas. Os professores dessas matérias acabam ajudando o aluno a se posicionar no espaço e a se situar no tempo, de forma crítica, de forma a perceber as diferenças. Então, na visão dos militares, era um inimigo a ser atacado, combatido. E foi. É por isso também que Filosofia e Sociologia saíram do currículo do ensino médio. Também são disciplinas que fazem pensar. E a Física, que é a ciência mais libertária, mais sofisticada em termos de pensamento, também foi sumindo do currículo. Hoje, no colegial, quem dá física são professores de matemática, ou química. As faculdades privadas também não têm esse curso. Foi então um planejamento a longo prazo, plantado e colocado em ação.
Vamos falar um pouco do movimento estudantil na ditadura. Antes mesmo de 1964, tínhamos os estudantes secundaristas e universitários já bem organizados.
O movimento de estudantes de 2o grau e universidades era muito forte. Muito mesmo. Os grandes quadros da resistência vêm exatamente do movimento estudantil. Se você analisar os números do regime militar vai comprovar, no livro “Brasil: Nunca Mais” [obra organizada pelo Cardeal Emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, Ed. Vozes, 1985] diz que entre presos, torturados, clandestinos, desaparecidos e mortos, 17 mil eram oriundos do movimento estudantil. É muita gente mesmo. No pré-64, a mobilização dos estudantes era muito forte e, embora estivessem brigando, por exemplo, pela defesa do ensino público, eram questões de fundo político. Então, já eram mobilizações políticas sim. Mas, depois de 64, é que a posição fica explícita, de caráter contrário à ditadura. A luta armada, que aconteceu entre 1967 e 1974 – foi destruída entre 74 e 75 – era composta basicamente por estudantes. Esse perfil permanece o mesmo até meados da década de 70, quando a guerrilha do Araguaia foi dizimada.
E a partir daí, como ficam esses estudantes?
Aí há uma grande mudança no perfil. Teremos, a partir da destruição da guerrilha, movimentos que vão de um extremo – a anarquia – ao outro – a apatia. O movimento secundarista deixa de existir mesmo. O universitário, ou migra para a extrema esquerda, que até perde um pouco a credibilidade, ou fica apático mesmo.
E o que a senhora diz sobre o movimento estudantil atual, em abril de 2004, 40 anos depois do golpe?
Eu sou uma otimista, então vejo o movimento estudantil renascendo. Só que com outras bases. Um movimento social que surge muito menos pensando numa revolução para agora e mais em algo bom para todos. Os estudantes deixaram de se espelhar nas figuras da ditadura. Não tem mais como horizonte só a revolução. O olhar deles agora é por um mundo melhor.