Entrevista com Marieta de Moraes Ferreira, historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
SINPRO-SP – Professora, 2004 é um ano especial para a História do Brasil?
MARIETA M. FERREIRA – Ah sim, sem dúvida. Eu nunca vi, por exemplo, se acionar, pesquisar, levantar, discutir e evocar tanto a memória e a figura de Getúlio Vargas quanto neste ano.
SINPRO – Isso acontece por conta da coincidência de datas?
MARIETA – É possível. Num período de cinco meses, temos 40 anos do Golpe Militar que derrubou o discípulo de Vargas, João Goulart; a morte do último trabalhista, Leonel Brizola; e o próprio cinqüentenário da morte dele. As datas ficam trazendo à tona uma memória muito presente na História e no dia-a-dia do Brasil. Mas não é só isso. Getúlio Vargas é, inegavelmente, um personagem muito importante na História brasileira. Seja para quem gosta e admira sua atuação, seja para quem é crítico. De qualquer maneira não se pode negar, todos têm que admitir a importância dele na História. Ele assume a Presidência da República em 1930, já apontando como solução para a crise política da Revolução de 30, e seu primeiro governo vai até 1945. São 15 anos ininterruptos no poder. Entre 1930 e 1934, é um governo provisório. Em 34, a Constituição lhe confere a legalidade para continuar no cargo. O período de legalidade vai até 1937. Nesse ano, Vargas dá um golpe e inicia o Estado Novo. É onde se revela a face autoritária e ditatorial dele. É um período em que, não podemos esquecer, tivemos prisões, torturas e mortes. O Estado Novo é violento com seus inimigos. Em 1945, Getúlio Vargas é deposto. Fica cinco anos longe do poder, mas volta em 1950 para dar início à fase mais populista, mais trabalhista de sua vida pública.
SINPRO – Como a senhora descreveria e definiria Getúlio Vargas?
MARIETA – Vargas deve ser visto e estudado hoje como um veículo. Um veículo para refletirmos mais seriamente sobre a História Contemporânea do Brasil, nossa memória coletiva e sobre os temas complexos de toda uma fase do nosso país. Não dá para taxá-lo como ditador e ponto, nem para taxá-lo como o pai salvador e fim. É preciso olhar para ele como esse canal que permite entender a política, a economia, os movimentos sociais e uma série de outras manifestações que vemos até hoje. Isso é Vargas. Outra coisa que precisa ser levantada é a questão do populismo. Tradicionalmente Vargas é classificado como populista. E, também tradicionalmente, o populismo é tido como um sistema em que um chefe manipula, controla as massas. Agora, os estudos mostram que não era bem assim no caso brasileiro. Eles apresentam um jogo muito mais complexo, cheio de nuances e negociações. Então essa colocação de dominação precisa ser revista. Esses estudos mostram, por exemplo, que, desde a 1a República, o movimento operário nacional se expande, se mobiliza, reivindica direitos e alcança vitórias importantes. Inclusive durante o governo de Vargas. Aliás, a legislação, a consolidação das leis trabalhistas vem desse movimento popular. Era um governo e um governante autoritário, sem dúvida, mas tinha lá suas especificidades.
SINPRO – Esse personagem, vilão e herói, deixa contribuições e marcas em diversas instâncias. Na área econômica e na organização do Estado brasileiro, quais os principais legados de Vargas?
MARIETA – Getúlio Vargas já se torna importante no cenário econômico assim que assume o poder, em 1930. Naquele momento, Vargas articula uma série de políticas e iniciativas para dar conta da Crise de 29, que estava abalando o mundo todo. Todas as medidas têm caráter bem intervencionista, com uma presença forte e marcante do Estado na economia. Até hoje há demanda em relação a essa prática e a esse discurso, que vêm da política intervencionista de Vargas. Ela obteve muito sucesso. Foi aí que crescimento econômico e desenvolvimento viraram sinônimos de industrialização. E é desse discurso, casado com uma prática e que, de fato, trouxe resultados positivos, que as pessoas têm saudades.
SINPRO – Essa política econômica intervencionista se mantém inalterada nos diferentes governos de Vargas? Não houve recuos, mudanças, adaptações?
MARIETA – Não foi uma política econômica linear. Houve momentos de intensificação e outros de menos força. Em 34, por exemplo, houve uma grande vitória dos liberais. Aí as ações centralizadoras do governo na Economia diminuíram um pouco. É verdade que essa expansão dos liberais teve mais força no campo político que no econômico. Mas ainda assim, o Estado sempre se manteve muito importante em todos os setores da economia. Na agricultura, na indústria, controlando taxas de câmbio, políticas tarifárias, etc... É no Estado Novo que acontece a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional. Mais que uma indústria de ponta, a CSN foi um marco fundador da industrialização brasileira.
SINPRO – O que pode ser destacado também no primeiro governo de Getúlio Vargas é o binômio Estado Autoritário/crescimento e desenvolvimento da Economia. Essa equação se repetiu outras vezes na nossa história recente. Como a senhora vê isso, o uso que se faz dessa equação? Ela é inevitável?
MARIETA – Acho que muitos políticos, herdeiros ou não de Vargas, tentam sim fazer uso dessa memória. É até o argumento mais forte que se usa para defender a Ditadura Militar de 64. Era ditadura, mas pelo menos o Brasil crescia, se desenvolvia. Era a época do famoso Milagre Brasileiro. Mas acho que não pode ser usado não. Acho que o povo brasileiro não se pode deixar enganar mais uma vez com esse discurso. É possível unir democracia e crescimento econômico. E o próprio Getúlio Vargas prova isso. Seu segundo governo estava nos padrões da democracia e apresentou índices muito positivos de desenvolvimento, de industrialização, etc... Até por isso é mais lembrado que o primeiro.
SINPRO – Mas ele era um ditador...
MARIETA. Sim, claro. Não se pode esquecer essa nem as tantas outras facetas de Vargas. Ele era, mesmo no governo democrático, um homem centralizador, autoritário. Mas era também um negociador, negociava até com os inimigos. Quando isso não era mais possível, aí sim baixava a mão de ferro e fazia uso da violência.
SINPRO – Principalmente durante o período do Estado Novo.
MARIETA – No Estado Novo, como em qualquer regime autoritário, não havia lugar para a oposição, para a discussão de pontos de vista divergentes. Aí o governo prendia, censurava, torturava e matava, em nome da estabilidade. A figura de Filinto Muller [Chefe da Polícia Política de Vargas, delegado responsável pela prisão, tortura, deportação e morte de opositores, como sindicalistas e comunistas] ganha expressão. O que não é certo é classificar o 1o governo de Vargas de Fascista ou Nazista. É verdade que naquele tempo ou se era partidário do Eixo, ou se alinhava com os Estados Unidos. Getúlio, como eu disse, era um negociador e transitou bem entre os dois pólos. Ele era um pragmático. Então, ora negociava e travava acordos econômicos importantes com os Estados Unidos, ora se mostrava mais próximo aos alemães e conseguia conquistas econômicas para o Brasil. Ele era muito prático, então suportava bem as convivências diferenciadas em seu governo.
SINPRO - A senhora falou em ditadura, falou em binômio crescimento econômico/ regime autoritário e, por fim, relembrou Filinto Müller que, além de comandar a repressão no Governo Vargas, foi uma espécie de inspirador dos torturadores na Ditadura Militar. O regime getulista foi diferente da Ditadura pós-64?
MARIETA – As conjunturas eram diferentes. Dentro do primeiro governo houve momentos distintos. Entre 1930 e 1933, foi um governo ditatorial, provisório, mas não violento, onde a todo momento se vislumbrava, se desejava uma volta ao Estado de direito. Havia, claro, censura e repressão aos sindicatos, mas não se registram mortes por tortura, por exemplo. Entre 34 e 37 foi um governo amparado na democracia e na Constituição. Aí em 1937 instala-se a ditadura do Estado Novo, com todos aqueles recursos de repressão colocados antes. Mas há diferenças conjunturais e no contexto mundial também.
SINPRO – E quais são as marcas de identidade do segundo governo Vargas, que se inicia em 50?
MARIETA – O governo do general Dutra (1945-50) rompe com esse caminho. Mas, em 1950, quando Getúlio assume de novo, democraticamente, o governo, e até 1964, com o golpe militar, há uma retomada da política econômica de Vargas. E, embora a ditadura militar rompa politicamente com Vargas – os militares têm repúdio ao trabalhismo –, certos princípios econômicos da era Vargas são mantidos. Os militares não rompem de vez com o nacionalismo, com a intervenção na economia, criam empresas estatais. Aliás, nunca se criou tantas estatais como na época da ditadura.
SINPRO – As privatizações ocorridas na década de 90 transformam essa estrutura nacionalista. Mas o legado de Vargas até hoje pode ser observado, por exemplo, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na estrutura de organização dos Sindicatos, na Justiça do Trabalho.
MARIETA – A CLT é de 1943. Claro que ela não foi criada ali. Ela é fruto de um processo que tem início junto com a Era Vargas, em 1930. É um ajuste das leis que vinham sendo criadas para dar coerência e coesão a todo esse conjunto. Mesmo que hoje sobrem críticas à CLT, às leis sindicais e à Justiça do Trabalho, o significado de tudo isso é importante. Muito importante. É verdade que a legislação de Vargas criava o sindicato único e submetia os sindicatos ao Estado. Mas vamos pensar num ponto só: o imposto sindical. Quantos governos já passaram pelo poder de lá para cá? Quantos governos, quantos regimes e de quantas orientações diferentes? Eles vêm e vão, mas o imposto se mantém. É por isso que eu digo, é inacreditável como, ainda hoje, a discussão em cima do que foi proposto e implementado por Vargas e a demanda pelo seu discurso permanecem inacreditavelmente vivas.
SINPRO – Está no imaginário brasileiro isso, professora? Já faz parte da nossa memória coletiva?
MARIETA – Está sim. Mas não é à toa que isso acontece. Tem o tempo que Vargas passou no poder. Foram 15 anos, e depois mais quatro, são quase 20 anos. Teve todas as iniciativas mesmo. Tinha a propaganda que Vargas soube usar muito bem a seu favor. Destaco aí o uso do rádio, que já era uma febre nacional. E tem a morte trágica e quase heróica. É, sem dúvida, um personagem muito especial na História do Brasil. Agora, mais que isso, Getúlio Vargas teve herdeiros políticos que, mais que pupilos, foram verdadeiros militantes da memória de Vargas, guardiões da memória de Vargas. E não sejamos ingênuos, a memória é uma construção. Evocar, comemorar e relembrar tem sempre uma razão política. Ninguém ativa a memória de Vargas sem um intuito. Seu discurso passou a alavancar os interesses de outras figuras públicas. Eles relembram o passado em função de interesses do presente.
SINPRO – Há exemplos bem recentes do uso da figura e do discurso de Vargas, às vezes inclusive de maneira oportunista, não?
MARIETA – No Rio de Janeiro, há uma disputa pelo uso da memória de Vargas. A prefeitura anunciou há poucos dias, logo depois da morte do herdeiro Brizola, a construção de um Memorial para Vargas. Esse Memorial ficará a dois quilômetros do Museu da República, um edifício histórico onde Vargas morou durante o segundo governo, e sede de outros eventos significativos em relação à história de Getúlio Vargas. Foi lá que aconteceu a última reunião ministerial e o suicídio de Vargas, em 1954. Cinqüenta anos mais tarde, o mesmo edifício vai abrigar uma grande exposição sobre o ex-presidente, além de sediar debates e lançamento de livros sempre relacionados à Era Vargas.
SINPRO – Em São Paulo, esse resgate parece ser menos intenso.
MARIETA – Ah sim, com certeza. Em São Paulo é um pouco diferente. Em São Paulo, Getúlio Vargas vale um pouco menos que no resto do país. É um pouco menos cultuado.
SINPRO – A Revolução de 32 é a causa desse estranhamento?
MARIETA – A Revolução de 32 sim, com certeza. Os paulistas estavam se sentindo traídos e nunca engoliram muito bem. Mas em 1937, um paulista estava concorrendo à Presidência da República quando Vargas deu o golpe do Estado Novo. Além disso, o governo Vargas encampou o jornal “O Estado de São Paulo” durante todo o Estado Novo. E o “Estado” já era um jornal importante, respeitado. Mas nem por isso, nem com esse culto mais reduzido, a demanda por discussões, informações e documentos são menores em São Paulo. A mídia paulista, as organizações e os curadores de exposições estão sempre indo atrás de dados sobre Vargas. Agora, no Sul é uma explosão. É o lugar por excelência dele, até a memória do Getúlio Vargas pré-30, como deputado e governador é forte. Agora, mesmo com as diferenças regionais, há dois traços de permanência de memória muito fortes que estão presentes no Brasil todo. O primeiro é a associação da figura de Getúlio com crescimento da economia e desenvolvimento. O segundo é a associação da figura dele a um presidente democrático e social. Isso é vivo e permanente. Mais importante, derruba aquela velha tese de que brasileiro não tem memória. Como não tem se este estamos passando de comemoração em comemoração?
SINPRO – Por fim, professora, o trabalhismo, a herança política de Getúlio Vargas morreu em junho, junto com Brizola?
MARIETA – Como eu disse, há uma enorme vontade de manter a figura de Vargas viva. Garotinho [Secretário de Segurança do Rio de Janeiro] faz uso disso, alguns herdeiros do PDT também, como o presidente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Vieira da Cunha, e até o prefeito do Rio, César Maia, com aquela história do Memorial. O que os políticos fazem é tentar captar elementos daquele projeto, que se mantêm atuais 50 anos depois. Elementos da agenda dos anos 50 que podem ser relidos, retrabalhados e aplicados hoje. É o caso das leis do trabalho, da intervenção do Estado na economia.
SUGESTÕES:
Site do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro: www.cpdoc. fgv.br
Filme “Olga”, de Jayme Monjardim, inspirado no livro de Fernando Morais, que estréia em circuito nacional em 20 de agosto. Site oficial do filme - www.olgaofilme.com.br
Edição especial da revista “Nossa História” sobre Getulio Vargas- nas bancas
Edição da semana de 11 de agosto da revista “Exame”, com matéria de capa sobre Getúlio Vargas
Livro "Vargas, agosto de 54, a história contada pelas ondas do rádio", organizado por Ana Baumworcel, que será lançado no dia 24 de agosto.