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Entrevista

Professor, depois das eleições municipais, temos acompanhado uma série de movimentações e de iniciativas que tentam ampliar o arco de partidos que apóiam o governo federal, abrindo ainda mais espaço para o PMDB, e tentando acomodar inclusive o PP, de Paulo Maluf. De outro lado, figuras historicamente ligadas ao partido e muito próximas do presidente da República, como Frei Beto e Ricardo Kotscho, têm abandonado a administração. O que está acontecendo com o governo?
O que acontece é que o PT se rendeu a um sistema partidário obsoleto. A eleição do Lula se dá em um momento em que esse sistema estava caindo pelas tabelas. O PT era o único que tinha alguma representatividade e legitimidade. O PMDB, por exemplo, sempre foi uma federação de caciques regionais. As transformações vividas pelo país nos últimos dez anos, desde a chegada do projeto neoliberal, detonaram as representações políticas tradicionais. É nesse vácuo que Lula é eleito. O problema é que, no governo, o PT reinventa e faz renascer esse sistema partidário. Ela chega ao poder graças à amplitude das alianças que faz, mas perde em representatividade e margem de atuação política. Essa ampla coalizão que foi montada não representa nada.

E agora já não são mais apenas os chamados radicais do partido que parecem decepcionados e estão abandonando o barco.
Os políticos profissionais continuam no governo. Essa é a única razão de ser deles. Todos os outros, Frei Beto, Ricardo Kotscho, se afastam, pois percebem que a coalizão de forças não só não ajuda como emperra o governo. Acredito também que essas pessoas ainda mantêm muito arraigados os ideais de transformação que o PT encarnava. Quando chegam à conclusão que não há qualquer possibilidade de colocar esses princípios e ações em prática, se decepcionam e preferem se afastar.

Qual o momento que marca mais nitidamente essa inflexão do PT, deixando para trás seus compromissos de transformação social?
Essa inflexão já se manifesta, mais abertamente, ainda durante a campanha eleitoral de 2002, com a edição da “Carta aos Brasileiros”. É um documento que tem um destinatário ambíguo, pois, supostamente, pretende se dirigir à população, mas na verdade se trata de um recado que deseja acalmar as instituições financeiras, as empresas privadas, os banqueiros e organismos internacionais. Já há na campanha outros vários sinais. E vale lembrar também o processo recente de discussões internas feitas pelo partido, em seus congressos e encontros nacionais, que também já anunciavam um gradativo afastamento dos projetos e das propostas programáticas defendidas no passado. O que passa a valer é o pragmatismo. De outro lado, o PT é uma grande burocracia, não no sentido pejorativo, mas no sentido sociológico. Em torno dele gravitam inúmeros interesses, é uma forma de racionalidade entre meios e fins, que funciona do alto para baixo, e não ao contrário, como deveria ser um partido de massas. É altamente hierarquizado, não há transferência de poderes entre seus diversos extratos. Essa tradição partidária é mais forte na esquerda, que sempre produziu enormes máquinas burocráticas.

E como o senhor definiria então o PT que hoje governa o país?
Manter-se vivo e no poder passa a ser sua única finalidade. Vale a tese de que os fins justificam os meios. Abre-se mão de todo o restante, tudo mais passa a ser secundário. As bases não guardam qualquer relação com as estruturas de comando. Há um descolamento das bases. O poder passa a ser a razão absoluta e completa de ser do partido, tudo gira em torno do poder, e mantê-lo torna-se a prioridade única e principal.

O ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, afirmou, depois de ser demitido do cargo, que o presidente Lula está sendo enganado pelas elites. O senhor concorda com essa tese?
Essa é ainda uma maneira de prestar fidelidade ao Lula, até uma forma piedosa. Todos os que se aproximam do Lula ficam de alguma forma cativados pela aparente simplicidade dele. Mas eu não acredito que ele esteja sendo enganado. Lula é um dos grandes mentores dessa virada. Não está sendo enganado. Ele está sim fazendo parte dessa elite, diferenciando-se das bases. Basta ver os documentários “Peões” e “Entreatos”. Não há nada de comum entre eles. Fica muito claro que o Lula atual compartilha valores e objetivos defendidos pelas elites.

O senhor citou os documentários que estão em exibição nos cinemas e que produzem retratos de momentos bastante distintos da trajetória política do atual presidente. Qual a sua leitura sobre os dois filmes?
Eles nos revelam uma situação dramática, pois mostram claramente esse movimento de descolamento. Não é leitura, é fato. “Peões” nos traz um líder popular real, mas, ao ver “Entreatos”, fica evidente o distanciamento operado pelo fato de o Lula ter se transformado em um homem do partido, que segue o pragmatismo do poder. São duas figuras políticas completamente diferentes. Além do mais, se lido poeticamente, “Peões” nos coloca ainda diante de uma história de derrota. Os personagens principais são anônimos, que continuam pobres, abandonados, vivendo de aposentadorias miseráveis, e alguns estão até em situação pior do que a que viviam nos tempos de sindicalismo do ABC. Todos continuam quase no mesmo patamar em que se encontravam em 1979, 80. Esse cenário traz um certo amargor. Foi um movimento tão vigoroso, que ajudou de fato a redemocratizar o país e, no limite, a levar o PT e o Lula à vitória. Mas, para a base social, o que ficou foi a derrota.

O PT é conhecido pelas suas tendências e divergências internas e há uma parcela do partido que não aceita essa transformação e faz críticas freqüentes aos rumos do atual governo. Há ainda espaço para essa disputa interna?
A chamada esquerda partidária ocupa atualmente um espaço muito restrito. São pessoas importantes na história do PT, atores políticos em quem eu acredito. Não sou sectário para afirmar que todo PT se converteu ao neoliberalismo. Mas essa ala tem um papel secundário, não está conseguindo virar a agenda. Muitos acabam se afastando do partido, rompendo. A verdade é que o governo fez um grande estrago na esquerda brasileira. Ela se desmoraliza quando o governo Lula apresenta sua cara pragmática. Destrói-se um esforço de construção política desenvolvido nos últimos trinta anos, quando conseguimos sair da inércia que havia sido imposta pela ditadura. É um enorme prejuízo. Eu não sou otimista e não vejo nenhuma força que possa reaglutinar essa esquerda.

Essa situação parece perigosa. A eleição do Lula, quase messiânica, criou uma enorme expectativa, e a frustração pode ser proporcional. Um fracasso do governo pode representar um desencanto com a própria democracia, já que essa era a única alternativa política ainda não testada no Brasil. Quais os riscos envolvidos nesse processo?
Eu vejo dois perigos. O primeiro é a população passar a dizer “olha aí, quando a esquerda chega ao poder, faz igual”. Essa interpretação pode produzir um efeito de desilusão com a democracia. Na outra ponta, algo também gravemente perigoso é a despolitização da política. Ela passa a ser desinteressante, pouco ou nada importante. Fica só o carisma do homem, a simbologia de sua carreira pública. São situações que só podem trazer perigos para a democracia, na medida em que parece que a política não é relevante. Estive recentemente na Colômbia e pude acompanhar esse cenário dramático de perto. O país convive com o narcotráfico, com os paramilitares, com um Estado violento, com os seqüestros e a guerrilha, e a população segue vivendo. Para os moradores de uma favela de Medellín, a política é desimportante. Esse risco existe também no Brasil, claro que não com a dramaticidade do momento vivido pela Colômbia.

Existe alguma possibilidade de reviravolta, de ruptura com esse pragmatismo político e de resgate dos princípios e propostas históricas do PT?
Não há qualquer possibilidade de reviravolta. Se isso acontecesse agora, nessas condições, levaria o Titanic para o fundo do mar. O governo, desde a campanha, se preocupou em não ameaçar os contratos, em fazer movimentos simpáticos aos investidores internacionais. Se você muda e rompe, a retaliação será feroz. Na verdade, o PT fez o processo inverso. A estratégia ideal e correta seria radicalizar em um primeiro momento, logo após a posse, para depois ajustar a agenda à realidade. Mas o governo caiu na defensiva imediatamente. Quando você começa na defensiva, fica complicado avançar. Você não tem mais forças para romper com esses interesses. A força estava na vitória eleitoral e política, mas o governo se ajustou, e perdeu a força. Além do mais, estou convencido de que algumas das principais figuras do PT, a começar pelo presidente da República, estão convictas de que esse é o caminho, que o capitalismo brasileiro poderá abrir e criar oportunidades para todos. Não vejo atualmente quem teria força política ou social para forçar o governo a rever essas posições.

A posse e os primeiros momentos do governo representavam então a possibilidade de virada?
Tinha que ser. Ali era a hora de colocar o time no ataque, para depois ir ajustando.

O que o senhor quer dizer com “colocar o time no ataque”? Diante da conjuntura internacional e também da correlação interna de forças, até onde o novo governo poderia ter chegado, até onde poderia ter esticado a corda? O que poderia ter sido feito e que não foi?
O governo tinha apoio da enorme massa de eleitores, ansiosa por mudanças. Esse apoio poderia ser convertido novamente em base social. Tínhamos também as oposições e os adversários na defensiva, em virtude da enormidade da derrota que tinham sofrido. O governo, portanto, tinha elementos de estratégia política que estavam às suas mãos, e podia marchar por outra estrada, estabelecendo uma outra agenda de prioridades. Mas faz exatamente o contrário, desmobilizando os movimentos sociais e as reivindicações populares, e enfiando goela abaixo a reforma da previdência, atacando justamente o funcionalismo público. Com isso, o PT estava comendo seus próprios filhos. É uma espécie de sacrifício grego. O governo aumenta a cota de conchavos, de chantagens, e perde ao mesmo tempo sua base social.

Apesar da interpretação da cúpula partidária, que destaca as vitórias e os aspectos quantitativos da disputa e o aumento do número de prefeituras, as últimas eleições municipais podem ser entendidas como um sinal de decepção de segmentos da sociedade com o governo petista?
Em parte, sim, já refletem um desencanto com o PT, sobretudo se olharmos para as classes médias. O mapa eleitoral de São Paulo, por exemplo, sempre indicou que a Marta Suplicy estava perdendo espaço entre a classe média, que é justamente quem ajuda a opinião pública. São sinais evidentes e reveladores desse desencanto. O partido pode até valorizar o quantitativo, em detrimento do qualitativo. Mas a verdade é que o PT nasce como um partido urbano, das grandes cidades, e agora passa a ser forte nas pequenas cidades, nos menores municípios. Da modernidade, transitou rapidamente para as características mais tradicionais dos partidos brasileiros.

A reeleição de Lula será tarefa fácil?
Não será tão tranqüila quanto se imagina. Pelo contrário, vai ser um processo muito difícil. Se a economia estiver em baixa, Lula será derrotado. E, mesmo com a economia crescendo, os desgastes internos são contínuos e, da forma como o Brasil está inserido na ordem internacional, de maneira absolutamente dependente, nada está garantido. Será muito difícil manter essa coalizão de forças, atender a interesses tão conflitantes, distribuir as benesses do Estado.

Professor, Lênin então perguntaria: o que fazer?

O que nos resta é fazer a crítica, do PT e do governo, por todos os lados e sob todos os aspectos, e sem o medo ou a vergonha de ser acusado de estar fazendo o “trabalho da direita”. Essa acusação não cola, não procede. É fundamentalista. É preciso fazer a crítica profunda desse processo. Mas, como já disse, não sou otimista, e não acredito que ela vá, no curto prazo, se transformar em uma oposição à esquerda capaz de derrotar o PT.

*Acesso da edição para assinantes do UOL ou Folha de S. Paulo.

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