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PT, crise e futuro

Fábio Wanderley Reis

O PT representa uma experiência singular (e positiva) na história partidária brasileira por reunir duas características. De um lado, as origens autenticamente populares de algumas de suas lideranças mais importantes, com destaque para Lula, bem como a orientação mais marcadamente ideológica que o partido teve desde o nascimento, desdobrando-se num compromisso social e na pretensão de aderir com vigor a princípios éticos. De outro, o fato de que essa consistência peculiar se combinou (ao contrário do que ocorreu no caso de outros partidos ideológicos, como, por exemplo, o antigo Partido Socialista Brasileiro) com clara viabilidade eleitoral, que se tornou patente desde o início de sua trajetória e rapidamente lhe permitiu disputar com chances reais até a Presidência da República.

Mas a articulação desses dois traços é problemática. Dadas as características de desinformação e alheamento político do eleitorado popular brasileiro, conseqüência da desigualdade e do pesado legado escravista, seria certamente equivocado pretender que o apoio eleitoral trazido ao partido tenha representado o respaldo para políticas de conteúdo radical, ou afins ao ideário socializante ou revolucionário do PT original. Em vez disso, as pesquisas mostram há tempos que o apoio do povão ao PT, e especialmente à imagem de Lula com seu simbolismo popular difuso, é, em boa medida, do mesmo tipo do tradicional apoio a partidos ou lideranças, às vezes abertamente "populistas", que se sucederam na preferência do eleitorado: o PTB de Vargas, "pai dos pobres", o MDB de 1974, identificado como o "partido dos pobres", ou mesmo Collor, o "caçador de marajás".

Isso não impede que se reconheça o avanço institucional na área partidária representado pelo PT, justificando a expectativa de que se tivesse com ele (especialmente no mundo novo em que a opção propriamente socialista se revela inviável) alguma forma de reprodução do que houve de melhor na experiência social-democrática européia: o inevitável aprendizado de realismo eleitoral e administrativo, mas combinado com a preservação da adesão a princípios e do compromisso social e com a canalização da participação político-eleitoral das massas populares em termos mais sadios do que os prevalecentes no populismo tradicional.

A projeção rumo ao futuro autorizada por esse diagnóstico permite imaginar que o partido mantivesse sua fidelidade à utopia socialista como orientação de longo prazo, sob a forma, por exemplo, do socialismo de mercado. A idéia do socialismo de mercado tem sido retomada não apenas como algo mais compatível com as novas realidades econômicas, mas na verdade como mais capaz de permitir a preservação de valores democráticos que se associam à autonomia tanto individual quanto, em geral, dos agentes da sociedade civil - valores que remetem, em última análise, à inspiração humanista e democrática do movimento socialista como tal. Mas haveria ao mesmo tempo o reconhecimento de que, tratando-se no futuro visível de administrar o capitalismo, a social-democracia representa a experiência institucionalmente mais rica e diversificada no sentido de dotar o capitalismo de sensibilidade social por meio de governos de extração e compromisso populares. E que, nas circunstâncias mundiais e nacionais da atualidade, a própria social-democracia se vê diante de dificuldades inéditas, levando a certa capitulação de governos de esquerda em vários países.

A chegada do PT ao poder presidencial nessas circunstâncias restritivas impôs limites severos, exigindo que uma política econômica realista e "neoliberal" ganhasse prioridade para viabilizar o próprio governo Lula (posto diante do risco do "golpe de mercado" de que alguns falaram) e a eventual adoção de políticas sociais mais efetivas. Mas o que se revela na crise que agora se desenvolve é o destempero do realismo, comprometendo-se a própria dimensão ética do capital simbólico do partido, com respeito à qual, ao contrário do que ocorre quanto aos problemas de política econômica e social, não há espaço para divergências "técnicas".

Creio ser fundamental reconhecer algo mais: que um dos componentes cruciais da crise é uma espécie de contraface sectária e arrogante da consistência virtuosa e ideológica do PT. Alguns casos de corrupção mais rombuda à parte, o aspecto decisivo é certamente o maquiavelismo tosco que levou figuras de destaque ao envolvimento em esquemas que não tinham sequer a possibilidade de se mostrarem eficientes (supostamente a consideração principal do maquiavélico que se dispõe a recorrer a meios pouco virtuosos em nome da importância dos fins), pois redundaram em colocar o governo e o partido nas mãos de pessoas que claramente não mereciam confiança.

Não há como deixar de assinalar que a própria figura de Lula se vê debilitada como liderança, ao não agir oportunamente, seja qual for a razão, contra os desmandos. Isso evidencia mais uma vez que o caráter exemplar da liderança e a disposição de traçar e afirmar os limites éticos da ação são eles mesmos indispensáveis à eficiência autêntica do líder. As frustrações que decorrem da crise resultam, em minha opinião, em que se possa dizer que o governo já perdeu a batalha da opinião pública, mesmo se Lula mantém penetração importante no eleitorado popular.

A reparação do lamentável retrocesso institucional que as proporções da crise do PT representam para o país é incerta e será no mínimo demorada, envolvendo a difícil tarefa de juntar os cacos da fusão inédita que parecia haver na trajetória petista entre o vigor do capital simbólico e os fatores propícios à inserção realista e eficiente no processo político-eleitoral.

Artigo publicado originalmente na revista "Teoria e Debate" e no portal da Fundação Perseu Abramo.

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