As duas outras idéias estão intimamente ligadas à primeira e ajudam a fechar o circuito: o presidente da AMB fala sobre a ocupação cidadã dos espaços públicos s e a necessidade de rechaçar o individualismo e o egoísmo. Mesmo que seja vista como uma medida de longo prazo, não me parece viável pensar na derrota do crime organizado se o Estado não começar a (re) ocupar e recuperar funções que são e, em tese, sempre foram dele – escolas de qualidade, postos de saúde e bom atendimento, segurança efetiva, lazer e cultura para todos, empregos e salários dignos –, mas, que, ao longo do tempo, por omissão, incompetência ou prática deliberada, acabaram sendo assumidas por criminosos e organizações por eles criadas. Não é novidade para ninguém o fato de que, em muitos morros cariocas, a verdadeira autoridade pública, o prefeito mesmo, são o tráfico de drogas, de maneira geral, e o traficante que comanda tal ou qual área, mais especificamente. Contraditoriamente, o Estado é proibido de entrar nesses guetos, que têm suas regras e ética próprias. É essa a situação que precisa ser revertida – a reincorporação e devolução do público ao seu público.
Essa tarefa será tanto mais eficaz quanto formos capazes de, simultaneamente, reintroduzir na agenda, na fala, na prática e nas atitudes cotidianas dos cidadãos valores e princípios como solidariedade, igualdade, justiça social, respeito aos direitos humanos, coletividade, saídas negociadas, tolerância, convivência com os diferentes, fraternidade e dignidade. Se atualmente, por conta da conjuntura, parecem discurso ultrapassado ou fala de algum ser extra-terrestre, representam caminho imprescindível para a garantia e consolidação da democracia, onde os seres humanos devem sempre valer mais do que os bens materiais. Fora disso, restam a barbárie, o salve-se quem puder, o consumismo desenfreado, a selva de pedras – e o crime organizado.
Esse artigo não tem a intenção de bater o martelo, esgotar o assunto ou chamar para si a redentora tarefa de apresentar verdades prontas e acabadas. Pelo contrário, pretende ser um ponto de partida, estímulo e contribuição ao debate. Sua grande preocupação, além de mostrar que há propostas concretas e viáveis que podem e devem ser colocadas em prática, é reforçar a tese de que essas saídas não podem se deixar levar pelo revanchismo, pelo emocionalismo barato e pela exploração inescrupulosa de situações-limite. Se agirem dessa forma, Estado e sociedade estarão se igualando ao crime organizado, que hoje tanto criticam. Como bem lembra Miguel Reale Junior, sempre no artigo publicado pela Folha, “a confiança constrói-se como fruto do exemplo continuado, decorrendo antes dos precedentes e da história do que de ações pontuais revestidas de excepcionalidade. É, portanto, o instante da busca de equilíbrio e de, sem atitudes de mero significado simbólico, avançar com inteligência na luta incessante contra o crime organizado, para que se obtenha ao longo do tempo o mais difícil: a manutenção da confiança da sociedade nas instituições democráticas”.