Tese revela mecanismos que fazem de pré-adolescentes reféns do consumismo - parte 1
Por Isabel Gardenal
Reportagem publicada no Jornal da Unicamp
A cada passo, a área de educação convive com situações que desafiam até mesmo os seus profissionais. Não se trata apenas de entender as tendências que surgem no cotidiano dos alunos nos seus lares e na escola – essas mudanças exigem uma releitura da realidade. Mais recentemente, os agentes dessas tendências são os pré-adolescentes, chamados tweens, em alusão ao termo inglês between, utilizado para designar o período entre a infância e a adolescência. São crianças na faixa etária de 8 a 14 anos, clientes preferenciais do marketing e da mídia. Uma pesquisa de doutorado defendida na Faculdade de Educação (FE) se dedicou a compreender o perfil dessas crianças e a especialista no assunto, a pedagoga e economista Maria Aparecida Belintane Fermiano, destinou 500 páginas de sua tese a algumas constatações. Ela revela: os tweens têm conquistado maior autonomia e possuem o seu próprio dinheiro. Apesar disso, o seu maior desejo ainda é estar mais tempo com suas famílias.
O trabalho, orientado pela professora Orly Zucatto Mantovani de Assis, exigiu fôlego de Fermiano. Nestes quatro anos, entrevistou 423 pré-adolescentes de três escolas de municípios da Região Metropolitana de Campinas: Sumaré, Nova Odessa e Americana, sendo duas de ensino privado e uma pública. Os tweens, provindos das classes sociais A a E, responderam a um questionário com 93 perguntas. A pesquisadora averiguou nas respostas uma nítida relação do marketing com o comportamento dos tweens e um investimento pesado em pesquisas para procurar conhecer melhor os seus clientes, meras crianças, mas com um poder de compra até então fora de suspeita.
No estudo, a pedagoga realiza uma abordagem ampla, costurando revelações culturais, econômicas, sociais, educacionais e familiares. Nele, traça um perfil dos tweens amparado por um survey, metodologia que se aplica mais à área de ciências sociais, de cunho qualitativo, a qual caracteriza uma amostra e pode ser replicada em outras, verificando-se se existe ou não correspondência de dados. “São raras as pesquisas com esse tema e fins educacionais no Brasil. Todas as perguntas foram consultadas em bases nacionais e internacionais. O intuito era conhecer se as respostas coincidiam com as de outras crianças na mesma faixa etária”, esclarece. O critério de seleção baseou-se no consentimento da direção das três escolas e dos pais. Fermiano aplicou pessoalmente o questionário em um dia combinado com os professores.
A pedagoga conta algumas de suas descobertas. Uma foi que a pesquisa confirmou seus pressupostos. Um deles é que o fenômeno da globalização provoca transformações radicais na economia, na sociedade e, por conseguinte, no comportamento dos pré-adolescentes. Assim, explica ela, os adultos têm razão ao falar que, “quando crianças, não agiam da mesma maneira que os pré-adolescentes atuais”. “Isso é verdade”, concorda.
Segundo ela, desde a Segunda Guerra Mundial, o núcleo familiar tem se alterado muito culturalmente, bem como a concepção de infância. Antigamente entendia-se que “as crianças tinham que obedecer e acabou”. Hoje, observa-se que, dentro de casa, os filhos são solicitados a participar e a dar opiniões, isso com relação a compras, desde um simples alimento até um móvel ou um equipamento eletrônico. “Essas crianças gastam um tempo exagerado diante da televisão, levam uma vida sedentária e comem mal. Este é um aspecto: a mídia influenciando. Outro aspecto é o mundo econômico delas: gastam e querem gastar cada vez mais. São crianças que estão num universo cultural e tecnológico muito diferente que o dos pais, e de grandes mudanças. Só que tais mudanças não podem ser olhadas apenas como resultado dessas novas tecnologias”, acentua Fermiano.
É que atualmente os tweens fazem parte de uma família com perfil completamente diferente. O casal sai para trabalhar e os filhos permanecem muito tempo sozinhos. Logo, têm que providenciar sua alimentação e ganham dinheiro para isso, pois os pais sempre deixam uma reserva em seu poder. Estas crianças, observa a pesquisadora, já estão inseridas num mundo econômico e constroem conhecimentos e estratégias em suas compras. Também são tratadas como clientes pelo marketing, sendo constantemente solicitadas a gastar mais. E os pais, por outro lado, acabam reforçando a importância do dinheiro para que elas possam se virar sozinhas, entre outros aspectos.
Nos Estados Unidos, esses pré-adolescentes gastaram na década de 60 cerca de US$ 2 bilhões e, na década de 80, US$ 6 bilhões. “E o mercado continua crescendo. É muito dinheiro”, opina Fermiano. Eles necessitam ser alfabetizados economicamente para construírem estratégias de resistência a esse bombardeio midiático para o consumo, valores e modelos impostos. Ficou claro que “os tweens ainda se sentem sozinhos e querem passar mais tempo em companhia da família”.
Em relação à mídia, a investigação mostrou que essas crianças têm acesso à tecnologia, independentemente do nível socioeconômico. Se pertencem a um nível mais baixo e não possuem computador em casa, acessam-no na escola, na casa de colegas ou em alguma lan house, ainda que não com a mesma frequência dos que têm. Desta forma, não há como ignorar que acabam tendo as mesmas influências que outras crianças. Este é outro pressuposto confirmado: há características homogêneas entre os comportamentos dos tweens de todos os níveis socioeconômicos que são notadas nas relações interpessoais e de identidade, na maneira de lidar com o cotidiano econômico e a mídia, observando-se todo um sistema de significações que aí está sendo construído.
Eles gostam esmagadoramente dos mesmos programas: Bob Sponja, seriados como Drake & Josh, Hanna Montana e Jonas Brothers, refletindo a sua época, relata a pesquisadora. “Em todos esses programas existe um forte apelo em termos de comportamento, em relação às vestimentas e aos gastos. E as crianças estão numa fase em que, o que admiram, querem para elas, já que lidam com muitas fantasias”, observa Fermiano. “Mesmo os pais as considerando adultas e o marketing as tratando como clientes, elas ainda são crianças. Não são pequenos adultos. Então a fantasia ainda está presente, assim como outras necessidades emocionais, afetivas e cognitivas que a tecnologia não é capaz de substituir.”
A pedagoga pontua que, como o meio ambiente em que eles vivem é muito solicitador, acabam apresentando uma performance tecnológica muito exacerbada. “São nativos digitais. Para eles, um mundo sem computador inexiste. É um modo de vida. E as pesquisas têm corroborado isso, indicando, por exemplo, que o computador e o celular são até compreendidos como uma extensão do corpo das crianças. Desta maneira, fica muito difícil para os adultos entenderem quem são estas crianças.”
Lacuna
Somado a isso, os livros de psicologia atuais não caracterizam essa faixa etária nativa de um mundo globalizado. A teoria que ainda auxilia esta compreensão está sustentada nos pilares da psicologia piagetiana e da psicologia econômica. A teoria piagetiana, expõe a pedagoga, dá conta de esmiuçar não somente as estruturas da criança , mas também o sistema de significações que estabelece. É a partir daí que constroi suas regras, seus valores, juntamente com a família, com a sociedade e com os amigos neste contexto social. “A estrutura cognitiva se desenvolve dentro de um ambiente no qual os indivíduos precisam se adaptar e desenvolver estratégias para agir conforme solicitados”, ensina.
Uma criança que está na frente do computador é porque foi solicitada intelectualmente para isso, diferentemente dos pais na sua infância. Tanto que com dois, três anos ela está brincando com esta ferramenta. Fermiano questiona como são hoje as estruturas dessas crianças diante de tantas novas solicitações que o meio apresenta. “Não estou dizendo que as estruturas cognitivas não existam, posto que elas existem. Mas estamos perante um contexto cultural novo. Quem são essas crianças? Como elas se adaptam? É neste sentido que novas investigações devem ser feitas, reinterpretando os tweens a partir das características da infância atual.” A pesquisadora justifica, portanto, que por esta razão seu trabalho precisou seguir uma divisão com três eixos: identidade e relações interpessoais (informações sobre si, família, amigos, escola), mídia (os comerciais e os programas que ela assiste) e cotidiano econômico (se ela recebe dinheiro, com o que gasta, se poupa).
Além da psicologia piagetiana, a pedagoga recorreu à psicologia econômica, que estuda o comportamento do consumidor frente às necessidades e à sua organização pessoal. Esta vertente, exemplifica, busca estudar o nível micro: o comportamento das pessoas e como que elas desenvolvem estratégias para lidar com as situações vividas na economia. “Aí reside o valor dos métodos das ciências sociais, como o survey, para conduzir um levantamento a fim de entender o que esse público-alvo pensa.”
A psicologia econômica, ressalta Fermiano, estuda os mecanismos psicológicos que estão por trás de determinados comportamentos, as variáveis que incidem em tomadas de decisão individual e coletiva, os processos de aprendizagem e socialização econômica e as diferentes maneiras como as pessoas compreendem o mundo da economia e suas variações. A psicologia econômica é uma disciplina nova, que teve a sua primeira definição em 1881. As pesquisas na área intensificaram-se a partir da Segunda Guerra Mundial, tendo cerca de 50 anos de investimento.