Professor e doutorando na área de geografia na FFLCH-USP, Mauricio Waldman reconhece: é grande o desafio que os professores têm pela frente a partir da publicação da lei que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas de educação básica. “O preparo dos docentes enfrenta muitos obstáculos, a começar pelo próprio desconhecimento da importância desta temática”. Ele faz importantes reflexões e dá algumas dicas na entrevista que segue.
Como o Sr. vê a aplicação dessa lei nas escolas?
Recordemos primeiramente que o Decreto 10.639 foi o primeiro do governo do Presidente Lula e que esta lei, não pode ser desvinculada da perspectiva das ações afirmativas. Em outras palavras, o decreto, ao destacar a questão da cultura, da história e da contribuição de matriz africana para o povo brasileiro no âmbito escolar, encara de frente uma questão que é a da discriminação. No ensino, isto se traduz pela forma estereotipada como os negros são analisados, desqualificados sem dó nem piedade, com graves repercussões para a identidade do povo brasileiro. Digo isto porque se sabe que entre 50 ou 60% da população brasileira é afro-descendente. É notório, por exemplo, o pouco que se fala sobre a história da África. Todos nós aprendemos sobre a origem do Reino de Portugal, o que evidentemente é imprescindível para o conhecimento da história brasileira.
Mas por outro lado, como é possível deixar de serem estudados reinos e impérios como os do Kongo e do Benin? Estes dois Estados Tradicionais africanos são extremamente importantes para a compreensão da nossa história e sequer são citados nos livros escolares. Episódios como os quilombos também não podem ser dissociados da rica experiência de resistência ao colonialismo localizada em Angola. Deste modo, a omissão com a história africana implica num conhecimento superficial da nossa própria história. O mesmo acontece com a geografia da África.
Explique melhor essa questão
Como deixar de lado o impressionante paralelismo que associa o Brasil com um continente que é inteiramente tropical, que abriga florestas equatoriais e vastas extensões savaneiras taxonomicamente análogas ao nosso cerrado? Note-se que o primeiro continente que estudamos é o europeu e o segundo, o continente americano. Em seguida, fala-se da Ásia e só depois, os livros dedicam-se à África. E isto quando “dá tempo” para esgotar a matéria e quando não se coloca o capítulo relacionado com a Oceania antes do próprio continente africano. Pior ainda é quando observamos o enfoque que é ofertado ao continente africano. Ninguém recorda que a África é o berço do monoteísmo, que a Etiópia é um dos estados cristãos mais antigos do mundo, que o homem, afinal, também tem origem na África.
Todos nós somos descendentes de africanos. Ninguém mais coloca isto em dúvida. Estas lacunas são também visíveis quando o foco são as manifestações culturais, cuja compreensão depende, aliás, de um sólido, consistente e determinado esforço em resgatar a contribuição africana, e isto numa escala que se estende da corporalidade e da fonologia passando pelo carnaval, pela capoeira, pela religiosidade e chegando até ao vocabulário. Afinal, nós dizemos que ficamos “fulos” mas poucos sabem que fulo é o nome de uma etnia muçulmana africana que se notabilizou pela resistência à escravidão e à imposição dos senhores de terras. De fato, é coisa para se ficar fulo de raiva, não é mesmo? Assim, eu acredito que o decreto 10.639, além de coroar décadas de lutas e de reivindicações dos movimentos populares, e no escopo deste, particularmente do movimento negro, pode efetivamente contribuir para que a cultura negra tenha o merecido espaço que lhe cabe na nossa formação.
E isto, note bem, também tem sido colocado pelos movimentos de base de educação como o Educafro. Obviamente, a aplicação concreta desta notável legislação irá com certeza encontrar resistências, baseadas numa postura racista que foi introjetada na consciência social por décadas de pregação apaixonadamente desqualificante. Motivo a mais para que nós nos empenhemos para derrubar esta muralha de preconceitos para que assim possamos abrir espaço para a construção de uma identidade nacional brasileira no mais amplo significado que esta possa incorporar.
Como o professor pode se preparar para aplicar essa temática em suas aulas?
O preparo enfrenta muitos obstáculos, a começar pelo próprio desconhecimento da importância desta temática. Afinal, Freud já dizia que são dois os métodos utilizados para evitar que uma situação seja enfrentada. O primeiro é simplesmente negar que um determinado problema existe. O outro é desqualificá-lo ou omitir a sua importância. Assim, eu acredito que um primeiro passo é a busca por informação criteriosa, de bom nível, firmemente alicerçada no real e de fato preocupada com uma abordagem democrática da questão. Há material com este perfil para todos os níveis de ensino. Recordaria por exemplo A História da África, elaborada pela UNESCO e que possui tradução para o português. Nos anos 70 e 80, a Revista Correio da UNESCO divulgou muito material sobre a África e questões culturais em geral. Há também a Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, que já divulgou dezenas de artigos de importância fundamental. O movimento negro também está na base de muitas iniciativas que hoje explicitam o alcance que muitos pioneiros já divisavam no passado.
Poderia indicar estudiosos?
Entre muitos outros, estudiosos como Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Pierre Verger, Rafael Sanzio dos Anjos e os professores da USP Carlos Serrano, Kabengele Munanga, Fábio Leite e Fernando Mourão, no Brasil, e Geoges Balandier e Amadou Hampate Ba, no exterior, configuram contribuições inestimáveis. É importante ressalvar que esta temática não se restringe à informação acadêmica. Temos também dezenas de títulos no campo da literatura, milhares de músicas e seus ritmos, parábolas, contos, práticas religiosas e hábitos provenientes da Mãe-África. Basta querermos olhar para estas influências que elas saltam aos nossos olhos. Uma destas é quando se joga “uma dose para o santo” quando se bebe alguma bebida. Esta é uma entre muitas práticas que “fazem a cabeça” do brasileiro, termo, aliás, também com origem na cultura negra. Outro aspecto a ser destacado é a importância das escolas promoverem ou patrocinarem cursos de capacitação. Creio que sem iniciativas desta índole, fica difícil existir mudanças efetivas no dia a dia de sala de aula. Por isso mesmo é que é fundamental que estas sejam desenvolvidas. Muitas prefeituras já oferecem cursos com esta temática. Exemplificando, a prefeitura municipal de Ribeirão Pires (no ABC paulista), ofereceu um curso com este perfil para o conjunto da rede municipal de ensino. O Centro de Estudos Africanos da USP ofereceu este ano, pela segunda vez, um curso de capacitação. O mesmo aconteceu com o Sinpro de São Paulo (que realizou a Semana da Consciência Negra) e o Sinpro de Bauru. Tenho conhecimento que no Rio Grande do Sul, na Bahia, no Rio de Janeiro, no Maranhão e em muitos outros estados, o mesmo está acontecendo. Observando esta dinâmica, fica claro que o decreto 10.639 veio para ficar e que a janela aberta por esta legislação nunca mais será fechada ou esquecida.
O Sr. tem sugestões de livros, pesquisas, cursos, sites, revistas para ajudar o professor nessa tarefas?
Sim tenho, mas seria arriscado tentar sumarizar num espaço tão pequeno o leque já existente de publicações existentes. O melhor que podemos fazer é buscar referências em atores sociais envolvidos diretamente com esta questão, como a já mencionada revista do Centro de Estudos Africanos da USP (fone 3091-3744) e sites como o da Casa de Cultura da Mulher Negra, Pueblos de África e muitos outros. Quem quiser uma bibliografia sumária pode também acessar o site www.mw.pro.br e na seção de Antropologia, checar no artigo Tradição, Espaço e Africanidade a bibliografia existente neste material.