Francisco Bicudo
A Folha de S. Paulo deu destaque pela primeira vez para o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) na edição do dia 30 de dezembro de 2009, com uma das chamadas secundárias de capa, que dizia “Cúpula militar ameaça sair em reação a plano sobre ditadura”. Em editorial veiculado no dia seguinte (“Confronto vão”), o jornal escrevia que “sem dúvida, o Programa de Direitos Humanos contém diretrizes que contestam o espírito da Lei da Anistia - e não há nenhuma vantagem para a democracia em atiçar ressentimentos que subsistem em frações residuais da opinião pública”. Até então, o foco da cobertura se concentrava na criação da Comissão da Verdade, destinada a esclarecer as perseguições políticas e os abusos de direitos humanos cometidos durante a ditadura militar (1964-1985).
O assunto voltou com força à tona no dia 8 de janeiro, com os potenciais alvos das críticas já ampliados (agora, as baterias não se dirigiam apenas à Comissão), mas ainda com espaço secundário na primeira página – “Católicos criticam plano de Lula para direitos humanos”, dizia a chamada. No dia seguinte, 9 de janeiro, o tema foi alçado à condição de manchete principal da capa – “Ministro critica plano de direitos humanos”, referindo-se a Reinhold Stephanes, da Agricultura, que condenava “o preconceito da proposta contra o agronegócio”. No domingo (10 de janeiro), dia nobre e de gala para o jornalismo impresso, quando há mais tempo para se dedicar à leitura, nova manchete principal de capa da Folha dizia que “Vannuchi ameaça pedir demissão se plano punir torturados”; no mesmo dia, outro editorial (“Direitos humanos”) afirmava que “documento do governo erra ao tentar doutrinar a sociedade e insuflar divisões em temas que exigem busca de consenso”.
As manchetes e editoriais da Folha, o principal jornal impresso do país, indicam que, em linhas gerais, a reverberação midiática oferecida ao Plano caminhou no sentido de contestá-lo e reprová-lo – mais ainda, demonizá-lo. A Folha, afinal, não foi voz isolada – ao contrário, nesse caso, a parte fala pelo todo. O jornal O Estado de S. Paulo, outro veículo impresso de referência no país, cerrou fileiras e reservou espaços generosos para a desqualificação da proposta apresentada pelo governo. Em artigo (“Direitos humanos”) publicado no dia 18 de janeiro, o professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Denis Rosenfield, escreveu que “o atual governo, em íntima colaboração com os movimentos sociais e as alas mais à esquerda do PT, está produzindo uma completa deformação dos direitos humanos. De perspectiva universal, eles estão se tornando, nas mãos dos que teimam em instaurar no Brasil uma sociedade socialista/comunista, um instrumento particular de conquista de poder”. Na mesma seção, na segunda-feira seguinte, 25 de janeiro, Carlos Alberto Di Franco, doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra (Espanha), dizia (texto “Lula – Imagem estilhaçada”) que “o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou em dezembro, às vésperas do Natal e aproveitando o recesso das festas, um ambicioso plano para implantação de um regime autoritário no Brasil”. Em editorial (“O PT de volta às origens”) publicado no dia 17 de janeiro, o Estadão já escrevia que, no decreto, “a expressão "direitos humanos" é apenas um carimbo destinado a legitimar um sistema autoritário de controle econômico, social e político”.
A orquestra estava afinada e, invariavelmente, emissoras de rádio e de televisão e grandes portais noticiosos amplificaram as mesmas notas musicais e o mesmo tom do discurso: em linhas gerais, o PNDH, em sua terceira edição, seria uma proposta “muito ampla, radical, revanchista, desconectada da realidade brasileira e autoritária, por ameaçar as liberdades de expressão e religiosa e o direito à propriedade”. Obviamente, houve momentos de dissonância na orquestra hegemônica, timidamente garantindo o exercício do contraditório. Vale destacar por exemplo artigo escrito pelo professor Paulo Sergio Pinheiro (“O constrangimento do silêncio”) e publicado pela Folha no dia 15 de janeiro. No texto, o ex-Secretário Nacional de Direitos Humanos (governo Fernando Henrique Cardoso) e relator das duas primeiras edições do PNDH (1996 e 2002) lamenta as mudanças feitas pelo presidente Lula no projeto original da terceira edição, por conta das pressões militares, principalmente no que diz respeito à apuração das violações cometidas pela ditadura militar. “Ao se renunciar a propor um projeto claro e definido de Comissão da Verdade, substituindo-a por um grupo de trabalho para formatar um projeto para o Congresso Nacional, corre-se o risco de não se ter Comissão da Verdade alguma. (...) E o Brasil continuará na rabeira de todos nossos vizinhos do Cone Sul, que reconstituíram a história dos horrores e já se livraram das trevas das ditaduras. Que baita constrangimento.”
Importante, claro, o espaço para a divergência foi no entanto pontual, acanhado, quase envergonhado e muito aquém do que se espera em uma sociedade democrática. Como analisa o jornalista Luciano Martins Costa, no site do Observatório da Imprensa de 19 de janeiro (texto “O que a imprensa esconde”), “a imprensa brasileira fez um ótimo serviço ao colocar em debate o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. A imprensa brasileira fez um péssimo serviço ao adotar atitude tendenciosa diante do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. Essas são as duas posições antagônicas e inconciliáveis que se pode identificar nos comentários sobre o decreto publicado em dezembro e que só foi descoberto pelos jornais na segunda semana de janeiro. No entanto, nenhum jornal ainda mergulhou profundamente na questão. Apenas artigos esparsos, sempre em flagrante minoria em relação às opiniões contrárias, defendem o decreto.” O próprio ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, questionou, em seu comentário de 17 de janeiro, a demora do jornal em dar destaque para o Plano. “Se o programa é tão relevante, por que o jornal demorou 18 dias para descobrir? Mais grave ainda: por que não acompanhou o processo público de sua elaboração, que levou um ano desde a realização da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em 2008, cujos debates foram literalmente ignorados pela Folha?”. Lins da Silva escreveu ainda que “o jornal também demorou a mostrar a seu público que as duas versões anteriores desse programa, de 1996 e 2002, eram muito parecidas com esta, consequência quase natural daquelas”.
Se levarmos em consideração que em grande medida a opinião pública constrói sua percepção de realidade e a noção que tem de país a partir das narrativas jornalísticas, a ideia (até histérica) que ficou foi que a terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos colocaria o Brasil à beira da implantação de uma ditadura. Trata-se de uma leitura limitante e reducionista. Pela importância dos debates que suscita e pelas contribuições que pode oferecer à democracia brasileira, o Plano (que obviamente não é perfeito ou definitivo e pode ser ajustado e aperfeiçoado) merece ser objeto de outros olhares e avaliações. Continua