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Educação e a política de cotas

Nilson Lage (*)

É natural que jornais, lidos pela classe média (as camadas populares, em regra, não têm acesso regular a impressos, salvo os religiosos), coloquem-se contra o sistema de cotas em universidades, introduzido no Brasil na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Essa seria a explicação para as críticas generalizadas da imprensa ao programa, que repete a "ação afirmativa" aplicada nos Estados Unidos.

A principal mudança, com relação ao modelo aplicado pelo Partido Democrata nos anos Clinton, foi a ampliação das cotas para beneficiar não apenas "negros", mas os "pobres" em geral – sem falar nos índios, se é que algum se habilitará às faculdades do Maracanã.

É que, no Brasil, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, é difícil saber quem é "negro". Lá, é fácil: é todo não-branco, não-índio, não-árabe e não-latino. Aqui, como acontece com os gatos no escuro, são muitos os pardos.

Por outro lado, há pobres de todas as raças. No Rio, como em quase toda parte, a pobreza é a nossa condição social mais bem distribuída; pelo menos desse ponto de vista, estamos cada vez mais democráticos. E, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, não costumamos esconder a miscigenação nem conseguimos fazê-lo com a pobreza.

A ampliação tornou o sistema confuso. O rapaz que tirou o primeiro lugar em medicina na UERJ, uma das faculdades mais concorridas, é aparentemente branco, talvez "levemente pardo", mas se declarou negro porque tem uma avó negra e talvez goste muito dela. Dentre os preteridos, muitos recorreram à Justiça via defensoria pública, porque não têm dinheiro para pagar advogados.

O sistema de cotas, tal como está sendo praticado, oferece os seguintes problemas:

1. Ao se basear na declaração do candidato, permite escolhas fundadas na avaliação das possibilidades de ingresso e não na verdade, isto é, naquilo que a pessoa sabe sobre sua origem familiar. Se se baseasse na aparência, também conduziria a erros e a avaliação subjetiva, uma vez que não existe padrão colorimétrico para se aferir cores ou "raças" e os traços fisionômicos também não são constantes. Se se baseasse no DNA – o que é inviável por causa do custo – entraria todo mundo nas cotas, porque, segundo os estudos da Universidade Federal de Minas Gerais com base em amostragem estatística, entre 66% e 88% dos brancos com elevado nível de instrução têm genes indígenas ou africanos. Mesmo no Sul do país, esse índice pode alcançar os 40%.

2. Não há definição de "pobreza" nem de "classe média". No Rio de Janeiro, há, pelo critério da renda, segmentos da classe média morando em favelas, em bairros da periferia ou em cubículos de bairros considerados nobres, como Copacabana. E há pessoas "pobres" que fazem das tripas coração para que seus filhos estudem: passam fome para pagar cursinhos pré-vestibulares. Há também escolas comunitárias, procuradas principalmente no segundo grau, que cobram nada ou muito pouco, algumas delas criadas justamente para elidir a questão da má qualidade do ensino na rede pública.

3. Nos últimos anos, sem que se percebesse claramente a tendência, as pessoas ricas (que a mídia chama de "classe média" porque ser rico é vergonhoso ou perigoso) passaram a preferir boas escolas da rede particular, principalmente a PUC, que tem bons padrões de ensino e ambiente compatível com elevados níveis de renda familiar. A universidade pública já não é o único ou o destino preferencial da juventude dourada.

4. As universidades públicas não são "escolas de terceiro grau". São centros de ensino, pesquisa e extensão. Pesquisa e extensão articulam-se com o ensino na graduação, através das bolsas de iniciação científica, de extensão, do trabalho desenvolvido em laboratórios, hospitais universitários e em ações de campo. O rebaixamento do nível de qualificação do corpo de alunos significa um golpe duro no processo de pesquisa, já que todo esforço terá que se voltar a recuperação dos problemas herdados do ensino básico e médio, sem nenhuma garantia de êxito.

5. Na medida em que essas ações estão sendo motivadas pela política de grupos militantes, o próximo e inevitável passo será pressionar os professores para que aprovem tais alunos carentes ou coloridos, embora sem atender aos níveis habituais de competência. Foi assim, em nome do nivelamento por baixo, que a rede pública do ensino básico e médio chegou ao atual nirvana estatístico, com a queda abrupta dos índices de reprovação sem aumento das cargas horárias, sem atendimento especial aos alunos que apresentam deficiências, sem averiguação clínica e sociológica das causas dessas deficiências – apenas culpando os professores e deixando claro a eles que a aprovação automática é o grande remédio para evitar "problemas com a Secretaria de Educação". A demagogia, penhorada, agradece.

Onde está, então, o erro da mídia? Está em não fazer jornalismo, pelo menos jornalismo moderno. Seria possível, com base nos questionários sócio-econômicos preenchidos nos vestibulares – e nas estatísticas de procura de bolsas de assistência social pelos universitários – ter uma idéia melhor da faixa de renda das pessoas que buscam ou alcançam aprovação nas universidades públicas.

Seria também possível, ouvindo professores (para isso, Alberto Dines que me perdoe, mas vale o off), avaliar as efetivas condições em que funciona a rede pública, em diferentes ambientes socioeconômicos e culturais – não para expor um circo de horrores, mas para mostrar que a ação afirmativa válida é possível aqui. Particularmente no segundo grau, é preciso deixar de lado essa história absurda de que se prepara o aluno "para a vida, não para o vestibular". O direito das pessoas pobres de todas as cores ao ensino superior começará no momento em que os professores das escolas públicas do ensino médio se convencerem de que estão, sim, habilitando pessoas para a vida universitária e para a ascensão social.

(*) Jornalista e professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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