Paulo Lucena de Menezes*
A adequada aplicação do princípio da igualdade jurídica, especialmente no que se refere às particularidades que envolvem a questão racial, tornou-se, nitidamente, um tema de grande destaque em diversos países. Discute-se no Brasil, por exemplo, a conveniência e a constitucionalidade da fixação de regras para a contratação de funcionários negros por parte do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao passo que a ausência de profissionais negros nos cargos de liderança das grandes empresas é objeto de sérios questionamentos, amplamente divulgados pela imprensa estrangeira.
O tema, a rigor, não é novo, principalmente no direito norte-americano.
De fato, por decorrência da expressão adotada nos textos normativos editados pelos Presidentes Kennedy e Johnson, convencionou-se denominar de “ação afirmativa” as medidas que estabelecem uma diferenciação de tratamento em favor de certos segmentos sociais (v.g. negros, índios, mulheres e deficientes físicos), com o intuito de corrigir algumas desigualdades existentes que, na maior parte dos casos, decorrem de práticas discriminatórias. Ainda que identificada por termos diversos (discriminação positiva, discriminação reversa, ação positiva, ação corretiva, medidas compensatórias etc.), essa mesma realidade mostra-se presente em países como a Alemanha, Austrália, Espanha, França e Itália. No caso da África do Sul, Canadá e Namíbia, em particular, essas medidas são expressamente autorizadas por normas constitucionais.
Mesmo nos Estados Unidos, contudo, as políticas de ação afirmativa sempre foram um assunto extremamente polêmico.
Em uma apertadíssima síntese, os argumentos favoráveis às políticas de ação afirmativa seguem, com algumas variações, as seguintes diretrizes: (1) sob o prisma da justiça compensatória, as políticas de ação afirmativa representam um ressarcimento pelos prejuízos, ônus e limitações impostos a determinados grupos sociais. Neste particular, alega-se que esses aspectos negativos, muitas vezes ligados à discriminação, perpetuam-se no tempo e são transmitidos para outras gerações, de forma que eles alcançam – e dizem respeito – a todo o grupo social discriminado, não se restringindo, portanto, a um período temporal específico ou apenas a alguns indivíduos; (2) sob o enfoque da justiça distributiva, tais políticas seriam legítimas por se voltarem para a igualdade proporcional, ou seja, para a distribuição de direitos e obrigações entre os membros de uma sociedade, levando-se em consideração os elementos concretos existentes (v.g. oportunidades, representação e necessidades) e os variados critérios possíveis de serem adotados nesta distribuição (v.g. eficiência e utilidade). A observância desta igualdade, em última análise, gera resultados que se revertem em favor de toda a sociedade.
Os opositores das políticas de ação afirmativa, por sua vez, alegam: (1) se os textos normativos devem ser neutros, sendo juridicamente vedada qualquer forma de discriminação (v.g. racial), não se justifica adotar determinados critérios de distinção (v.g. raça ou gênero), que normalmente são discriminatórios, ainda que para favorecer grupos sociais específicos. Admitir esta hipótese implicaria em instituir uma “discriminação reversa” em favor dos grupos beneficiados; (2) as deficiências e desvantagens que são identificadas em determinados grupos variam de indivíduo para indivíduo, de maneira que os benefícios concedidos por meio dessas políticas terminam alcançando pessoas que não necessitam deles; (3) a discriminação pode estar mais associada a fatores econômicos do que em outras circunstâncias (v.g. pertencer a um grupo minoritário), razão pela qual, nestes casos, tais fatores deveriam ser os únicos critérios diferenciadores possíveis de serem adotados; (4) a concessão de benefícios tende a ampliar a animosidade e a discriminação existente contra o grupo social favorecido por tais políticas; (5) os tratamentos preferenciais podem estigmatizar tanto as pessoas favorecidas, como aquelas que deixam de recebê-los; (6) a utilização de políticas de ação afirmativa, especialmente no mercado de trabalho, pode implicar na contratação e promoção de funcionários desqualificados, o que termina gerando um custo para toda a sociedade; (7) em casos extremos, nos quais o caráter compensatório da ação afirmativa é evidente e necessário, somente as próprias partes envolvidas em uma dada situação concreta, individualmente consideradas (i.e. as vítimas reais e os respectivos responsáveis pela discriminação), poderiam sujeitar-se às medidas de ação afirmativa, e ainda assim, proporcionalmente aos prejuízos e danos identificados.
No direito norte-americano, desde que a Suprema Corte norte-americana julgou o conhecido caso Bakke (1978), decidindo que as universidades não poderiam utilizar critérios rígidos em favor de determinados grupos raciais (“cotas”), por se tratar de uma discriminação calcada em um elemento vedado pela Constituição (raça), mas que elas estavam autorizadas a adotar este mesmo elemento como uma das referências para a seleção de novos alunos, desde que de forma flexível e em conjunto outros critérios, a matéria nunca alcançou uma unanimidade.
Durante mais de uma década, esse mesmo tribunal mostrou-se extremamente cauteloso em definir parâmetros genéricos, até que ao julgar o caso Adarand Constructor v. Pena (1995), terminou impondo um determinado padrão de julgamento (strict judicial scrutiny) que, sob o prisma jurídico, torna praticamente inviável a implementação das principais modalidades de ação afirmativa. Desde então, tem-se confirmado a prevalência de medidas contrárias a tais políticas, não só no plano judicial (v.g. Hopwood v. University of Texas School of Law), mas também na esfera legal, de forma que alguns Estados vêm extinguindo ou restringindo substancialmente os programas de ação afirmativa existentes, como é o caso da Califórnia (Proposition 209) e de Washington (Initiative Measure 200), nos quais as decisões decorreram de aprovação popular, e também da Flórida, onde a iniciativa partiu do governador Jeb Bush (Executive Order 99-281), irmão do atual presidente norte-americano.
Não obstante a existência de alguns casos isolados, como a recente decisão proferida pelo Sixth Circuit Court of Appeals no processo Gratz v. Bollinger, a chance de se reverter esse cenário, ao menos em um curto prazo, é bastante remota.
No que se refere ao Brasil, ainda que a destempo, terminou-se incorporando ao ordenamento jurídico pátrio não apenas a própria terminologia, visto que o Programa Nacional de Direitos Humanos refere-se textualmente às “políticas de ação afirmativa”, mas também os modelos alienígenas, ainda que com ressalvas. Neste particular, e dando-se especial atenção para a questão racial, nota-se a existência de programas oficiais que buscam propiciar vantagens adicionais para os indivíduos negros, como é o caso das “bolsas-prêmio de vocação para a diplomacia” criadas pelo Ministério das Relações Exteriores, como também de iniciativas privadas, que, embora em pequeno número, merecem aplausos.
Na esfera legal, contudo, observa-se uma clara inclinação em se utilizar, preponderantemente, o critério de “cotas”, impondo-se a reserva de um determinado espaço para os indivíduos negros, de forma inflexível e por meio da determinação de um percentual, na mesma linha adotada para a proteção dos deficientes físicos (Lei n. 8.213/91) e para o aumento da participação das mulheres nas disputas eleitorais (Lei n. 9.504/97). As dificuldades e as divergências no trato da matéria, porém, são nítidas e muitas vezes iniciam-se no âmbito do processo legislativo.
Adotando-se como referência o tema da inclusão de artistas negros em publicidades oficiais, constata-se a existência de previsões variadas sobre o tópico: a Constituição Estadual da Bahia fixa uma cota de 50% para os artistas negros (art. 289); a Constituição do Estado do Pará não trata expressamente do assunto, mas prevê “medidas compensatórias” para superar desigualdades de fato, favorecendo a participação de pessoas discriminadas no mercado de trabalho (art. 336, parágrafo único); a Prefeitura Municipal de Vitória assegura a “pluralidade étnica” na idealização de peças publicitárias oficiais, sem fixar um percentual específico (Lei n. 4.193/95), tal como ocorre com o município de São Paulo (Lei n. 12.353/97); a Prefeitura Municipal de Aracajú impõe a obrigatoriedade da inclusão de artistas ou modelos negros, preferencialmente sergipanos, “observada a paridade entre o número de artistas vinculados na peça ou filme publicitário” (Lei n. 2.399/96); a Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte prevê a inclusão “de modelos negros em proporção compatível com a sua presença no conjunto da população municipal” (art. 182, II), que posteriormente foi definida em 40% (Lei n. 6.979/95), o mesmo patamar adotado pelo município do Rio de Janeiro (Lei n. 2.325/95). Para que não se pense que as divergências decorrem de características regionais, deve-se lembrar que o Projeto de Lei n. 258/97, que originou a lei paulista, previa uma cota de 25% para os artistas negros, mas esta disposição foi vetada pelo Prefeito Celso Pitta, que entendeu tratar-se de norma inconstitucional. Da mesma forma, e com igual fundamento, a doutrina relata que propostas semelhantes foram vetadas, em duas oportunidades, pelo Governador do Mato Grosso do Sul.
À evidência, é uma mera questão de tempo, até que o Poder Judiciário venha a se manifestar definitivamente sobre a constitucionalidade dessas disposições legais. Quando essa situação se concretizar, é preciso estar atento para as inúmeras diferenças existentes entre o ordenamento jurídico brasileiro e os demais sistemas.
Em primeiro lugar, mesmo que desconsiderados os aspectos fáticos (v.g. o Brasil foi o país que mais recebeu escravos africanos -40% do contingente enviado para as Américas - e o último a abolir a escravatura no continente), a experiência norte-americana – que não admite o sistema de “cotas”, mas apenas os sistema de metas e cronogramas (goals and time tables) – não serve como uma referência absoluta, pois o ordenamento jurídico dos Estados Unidos interpreta o princípio da igualdade por meio de padrões de investigação judicial (standard of review) que não se coadunam, de forma precisa, com a realidade pátria.
Segundo, sem adentrar na discussão a respeito do alcance do princípio da igualdade jurídica previsto na Constituição Federal (art. 5o, caput), deve-se recordar que o Brasil é signatário de tratados internacionais que autorizam expressamente a adoção de políticas de ação afirmativa, como é o caso da “Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial” (art. 1, 4o).
Terceiro, a Constituição brasileira contempla diversas previsões que favorecem a adoção de tratamento diferenciado para os indivíduos da raça negra (ex. art. 3o, I, III e IV), iniciando-se pelo próprio preâmbulo da Carta, que reconhece “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito”. O problema que emerge, nesse cenário, é a questão da razoabilidade na fixação dos tratamentos difenciados - o que pressupõe a existência de dados estatísticos confiáveis - além do aspecto temporal, posto que, mesmo nos tratados internacionais citados, a ação afirmativa é sempre prevista como um instrumento provisório que visa extinguir desequilíbrios, mas nunca assegurar privilégios. Neste ponto, alguns parâmetros fixados pela Suprema Corte norte-americana (v.g. a avaliação da real necessidade dos programas da ação afirmativa, o impacto de tais programas com relação a terceiros, as modalidades de provas admitidas em juízo etc), em casos como United States vs. Paradise e United Steelworkers of America, AFL-CIO vs. Weber, podem ser de grande valia.
Com as devidas cautelas, é possível que o Programa Nacional de Direitos Humanos venha a ser plenamente implementado, conduzindo-nos a uma sociedade mais justa.
* Advogado. Doutorando e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor do livro “Ação Afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano” (Ed. RT, 2001).