Sueli Carneiro*
A juíza federal Mônica Sifuentes, em artigo contrário à adoção de cotas para os afro-descendentes nas universidades publicado no caderno Direito & Justiça do Correio Braziliense de 18 de fevereiro último (NR- 18/02/2002), argumenta que: ‘‘(...) para nós mulheres não houve necessidade de estipular cotas. Bastou a concorrência em igualdade de condições com os homens para que hoje fôssemos maioria em todos os cursos universitários do país’’.
A utilização do pronome nobre pela juíza faz supor que as mulheres são um grupo homogêneo, que compartilham igualitariamente das oportunidades sociais, em especial no que concerne ao acesso à educação.
No entanto, segundo dados do Ministério da Educação, em 2000 apenas 2,2% do contingente de formandos nas universidades eram negros, enquanto os brancos representaram 80%.
O argumento da juíza não leva em conta o fato de os homens entrarem mais cedo do que as mulheres no mercado de trabalho com prejuízos para a sua permanência no sistema educacional, e que, apesar disso, os estudos recentes sobre a mulher no mercado de trabalho revelam que elas precisam de uma vantagem de cinco anos de escolaridade para alcançar a mesma probabilidade que os homens têm de obter um emprego no setor formal. Para as mulheres negras alcançarem os mesmos padrões salariais das mulheres brancas com quatro a sete anos de estudos, elas precisam de mais quatro anos de instrução, ou seja, de oito a onze anos de estudos.
Essa é a igualdade de gênero e de raça instituída no mercado de trabalho e o retorno que as mulheres, sobretudo as negras, têm do seu esforço educacional. Entre a percentagem ínfima de negros que adentram as universidades em nosso país, deve estar a leitora desse jornal, Carla Ubaldina Carneiro de Oliveira, que, em carta ao Correio de 20/2/2002 diz: ‘‘Será intolerável ver minha vitória pessoal, resultante do esforço e dedicação que tive durante toda a minha vida aos estudos, ser considerada fruto de uma ‘vantagem’ concedida à população negra por uma determinação legal, a qual abomino’’.
A postura da leitora demonstra a eficiência dos mecanismos educativos e ideológicos de nossa sociedade para inculcar-nos a visão segundo a qual a mobilidade social está aí, disponível igualitariamente a todos, dependendo apenas do esforço pessoal de cada um para a sua realização. Desaparecem, assim, as condições históricas que vêm produzindo e reproduzindo a pobreza dos negros. Então, os excluídos, de vítimas se tornam réus. Nessa armadilha em que o individualismo liberal nos enreda, a mobilidade social individual de uma pessoa negra é utilizada contra o próprio grupo racial reiterando os estigmas que o atinge. O negro ‘‘bem-sucedido’’ torna-se a exceção que confirma a regra discriminatória: se um consegue, os demais não se esforçaram o suficiente.
A reivindicação de cotas e políticas de ação afirmativas não desqualifica o grupo negro. Ao contrário, representa a sua afirmação como sujeito de direitos, consciente de sua condição de credor social de um país que promoveu a sua acumulação primitiva de capital pela exploração do trabalho escravo, que não ofereceu nenhum tipo de reparação aos negros na abolição, e que permanece lhe negando integração social por meio das múltiplas formas de exclusão racial vigentes na sociedade, das quais o não-acesso à educação é uma das mais perversas.
O que devemos abominar é um processo histórico que transformou seres humanos em mercadorias e instrumentos de trabalho. E, depois de explorá-los por séculos, destinou-os à marginalização social.
A adoção de ações compensatórias deve ser a expressão do reconhecimento de que é chegada a hora de o país se reconciliar com uma história em que o mérito tem se constituído eufemismo para os privilégios instituídos pelas clivagens raciais persistentes na sociedade.
Sueli Carneiro é pesquisadora do CNPQ e diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra.
Artigo publicado pelo “Correio Braziliense” de 28 de fevereiro de 2002. Também veiculado pelo site www.afirma.inf.br.