Depoimento de Evandro Ghedin, professor da Universidade Estadual do Amazonas
Por Francisco Bicudo
“Uma de minhas principais preocupações em relação ao tema diz respeito à instrumentalização da formação de professores. Nos últimos tempos, propostas conduzidas pelos poderes públicos, com forte viés economicista e neoliberal, muitas vezes definem que basta instruir o professor, oferecendo a ele um conjunto de técnicas e de competências, e estaria assim resolvido o problema do ensino. Essa visão, extremamente pobre de fundamentos, enxerga o professor, sob o ponto de vista teórico e prático, como um simples instrumento a serviço do sistema educacional. É uma visão mecânica. Por isso, creio que ela deva ser combatida com muita ênfase.
Contrariando radicalmente essa concepção, creio que o professor deva ser não apenas um objeto de outros conhecimentos, mas um construtor de hábitos, de valores, sujeito do conhecimento que ele produz. Deve ser mais do que isso: um sujeito político, disseminador de princípios éticos, responsável não apenas pela transmissão, mas principalmente pela produção de conhecimentos, pela pesquisa. Em sala de aula, um professor formado sob a hegemonia do tecnicismo parte do princípio de que ele sabe e o aluno não sabe. Vai conduzir suas aulas sempre com base nessa dinâmica. Já o educador-sujeito acredita que tanto ele quanto o estudante estão ali para aprender. Embora o professor esteja em um patamar superior, será sempre, como dizia Paulo Freire, “um sujeito aprendiz”, já que o aluno também produz conhecimentos. A aula não pode mais ser o espaço do espetáculo exclusivo do professor. Ele deve conduzir os estudantes a um processo constante de indagações, de interrogações e de pesquisas sobre os mais diversos assuntos.
Se ele propõe, por exemplo, um trabalho para a sexta série sobre os seres vivos, ele precisa partir de uma investigação prévia sobre o tema, para que depois possa acontecer a catalogação das informações geradas. É nesse momento que começa a aula e que o professor auxilia os alunos a reunir essas informações e a transformá-las em conhecimentos, organizando e gerando conceitos. A aula, portanto, começa com o saber do aluno, para então se somar ao saber do professor. É outra postura metodológica. A mediação é do professor. Ele é mediador, não o depositário, o poço do saber.
Diferenças importantes
Uma outra questão importante a discutir é a diferença entre a forma como o professor ensina e a maneira como ele aprendeu. Vale reforçar: são completamente diferentes. No entanto, em geral o educador vai ensinar da mesma maneira como ele aprendeu na universidade. Se ele aprendeu lendo e interpretando texto, provavelmente vai adotar esse mesmo método com as suas turmas. Ele centra a prática no conceito ensino, e esquece a aprendizagem. É preciso olhar com carinho para os dois pólos. Claro que há interdependência entre as duas dinâmicas, são correlatas, simultâneas, complementares, mas possuem também dinâmicas, públicos e objetivos específicos e diferenciados.
Creio que esse novo professor deva ser formado com base em cinco princípios básicos. O primeiro diz respeito à dimensão ética. Antes de mais nada, é preciso considerar a vida como um valor absoluto e supremo. Junto com essa exigência, vem a compreensão de que qualquer forma de violência, ainda que localizada, atinge a humanidade como um todo. O ser professor está imbuído de um conjunto de valores e de práticas que servem como inspiração, como referência, são formativas dos alunos. Seu modo de ser indica a prática ética que ele assume e difunde. Trata-se do reconhecimento do outro como igual, o outro é a possibilidade de identidade e de compreensão do humano que eu tenho. É o que nos distingue da animalidade e que nos permite incentivar os valores de justiça, igualdade, respeito, fraternidade, combatendo as injustiças e a corrupção, por exemplo.
Simultaneamente, o educador tem um compromisso político. Seu trabalho é uma atividade social. Vale diferenciar: político não significa partidário, mas é algo decisivo na formação da consciência crítica que nos permite perceber os discursos, as ideologias, o modo como a sociedade se organiza, as relações de poder e de produção. O papel do professor passa a ser o de oferecer essa possibilidade de encontro e de leitura crítica do mundo e de mostrar como as ações e opções políticas não são aleatórias, mas surgem de intencionalidades. Nesse sentido, o ato pedagógico é também político, pois construtor de sujeitos conscientes de sues direitos e de seus deveres, de seu papel social.
A terceira dimensão é a que eu chamo de epistemológica. Significa o domínio dos conceitos da área de saber em que atua o educador. Ele precisa dominar os conceitos que orientam a sua profissão. Nesse sentido, é preciso garantir uma sólida formação teórica, para que ele tenha a condição de oferecer a possibilidade de construir sentidos para os conceitos formulados pelos alunos. Esse domínio de saberes é fundamental. De nada adiantam a formação ética e política se o educador não dominar esse repertório específico. Como se vê, estamos falando de dimensões complementares, e não excludentes.
O quarto aspecto diz respeito às técnicas. E vale a ressalva, para não gerar confusões ou distorções: não estamos falando de instrumentos tecnicistas e mecânicos, mas do domínio de métodos e de procedimentos de ensino e de aprendizagem. De nada adianta ter conhecimento de causa se o educador não for capaz de compartilhar essa bagagem, de fazer com que ela consiga cruzar a ponte e chegar aos alunos. Assim, além de dominar conhecimentos específicos, é preciso desenvolver um conjunto de habilidades didáticas e de fazeres que permitam ao professor perceber COMO ele deve conduzir o processo de aprendizagem. Estamos falando dos procedimentos metodológicos, dos instrumentos necessários para que se possa ensinar.
E circuito se completa com a dimensão estética. A sociedade tem e propaga determinados valores estéticos, que devem ser compreendidos, para que possam ser analisados e também questionados. Além disso, há uma beleza envolvida na prática pedagógica. O espaço da sala de aula não pode ser exclusivamente reservado para as questões conceituais e teóricas. O ser humano é carregado de emoções. E o processo de formação deve garantir uma atenção especial para a manifestação do caráter de emoção e afetividade da educação. Não somos feitos apenas por racionalidade, mas também por sonhos, carinhos, afetividades e emoções”.