Por Francisco Bicudo
Nos últimos dois meses, você acostumou-se a encontrar no site do Sindicato as reflexões e análises semanais de especialistas sobre a formação que o professor deve buscar para enfrentar os desafios educacionais que se anunciam.
Durante a série especial “O futuro do professor”, foram debatidos temas como a necessidade de valorização da profissão, o educador como o mediador entre a sociedade da informação e a do conhecimento, o uso das novas tecnologias como suporte e auxílio pedagógico e não como castradoras da atividade docente, a nova dinâmica das aulas, além da postura ética e cidadã que continua a ser exigida de todos os professores, sujeitos fundamentais da construção do conhecimento crítico e transformador.
E não haveria melhor maneira de encerrar a série do que resgatar, ainda que pontual e minimamente, algumas das idéias do filósofo francês Edgar Morin, um dos principais pensadores contemporâneos. Ele defende, dentre outras propostas, aquilo que chama de “entendimento complexo da humanidade” e “a religação dos saberes”. O texto abaixo reproduz a introdução de uma de suas obras – “Os sete saberes necessários à educação do futuro” (Editora Cortez).
É apenas um aperitivo, um “grand finale” e um incentivo para que o professor possa buscar a leitura da íntegra das obras de Morin – um desafio certamente fascinante.
Prólogo
Este texto antecede qualquer guia ou compêndio de ensino. Não é um tratado sobre o conjunto das disciplinas que são ou deveriam ser ensinadas: pretende, única e essencialmente, expor problemas centrais ou fundamentais que permanecem totalmente ignorados ou esquecidos e que são necessários para se ensinar no próximo século (NR: o autor refere-se ao século XXI).
Há sete saberes “fundamentais” que a educação do futuro deveria tratar em toda sociedade e em toda cultura, sem exclusividade nem rejeição, segundo modelos e regras próprias a cada sociedade e a cada cultura.
Acrescentamos que o saber científico sobre o qual este texto se apóia para situar a condição humana não só é provisório, mas também desemboca em profundos mistérios referentes ao Universo, à Vida, ao nascimento do ser humano. Aqui se abre um indecidível, no qual intervêm opções filosóficas e crenças religiosas através das culturas e civilizações.
Os sete saberes necessários
Capítulo I: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão
• É impressionante que a educação que visa a transmitir conhecimentos seja cega quanto ao que é o conhecimento humano, seus dispositivos, enfermidades, dificuldades, tendências ao erro e à ilusão, e não se preocupe em fazer conhecer o que é conhecer.
• De fato, o conhecimento não pode ser considerado uma ferramenta ready made, que pode ser utilizada sem que sua natureza seja examinada. Da mesma forma, o conhecimento do conhecimento deve aparecer como necessidade primeira, que serviria de preparação para enfrentar os riscos permanentes de erro e de ilusão, que não cessam de parasitar a mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo à lucidez.
• É necessário introduzir e desenvolver na educação o estudo das características cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos humanos, de seus processos e modalidades, das disposições tanto psíquicas quanto culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão.
Capítulo II: Os princípios do conhecimento pertinente
• Existe um problema capital, sempre ignorado, que é o da necessidade de promover o conhecimento capaz de apreender problemas globais e fundamentais para neles inserir os conhecimentos parciais e locais.
• A supremacia do conhecimento fragmentado de acordo com as disciplinas impede freqüentemente de operar o vínculo entre as partes e a totalidade, e deve ser substituída por um modo de conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu conjunto.
• É necessário desenvolver a aptidão natural do espírito humano para situar todas essas informações em um contexto e em um conjunto. É preciso ensinar os métodos que permitam estabelecer as relações mútuas e as influências recíprocas entre as partes e o todo em um mundo complexo.
Capítulo III: Ensinar a condição humana
• O ser humano é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico. Esta unidade complexa da natureza humana é totalmente desintegrada na educação por meio das disciplinas, tendo-se tornado impossível aprender o que significa ser humano. É preciso restaurá-la, de modo que cada um, onde quer que se encontre, tome conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua identidade comum a todos os outros humanos.
• Desse modo, a condição humana deveria ser o objeto essencial de todo o ensino.
• Este capítulo mostra como é possível, com base nas disciplinas atuais, reconhecer a unidade e a complexidade humanas, reunindo e organizando conhecimentos dispersos nas ciências da natureza, nas ciências humanas, na literatura e na filosofia, e põe em evidência o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade de tudo que é humano.
Capítulo IV: Ensinar a identidade terrena
• O destino planetário do gênero humano é outra realidade-chave até agora ignorada pela educação. O conhecimento dos desenvolvimentos da era planetária, que tendem a crescer no século XXI, e o reconhecimento da identidade terrena, que se tornará cada vez mais indispensável a cada um e a todos, devem converter-se em um dos principais objetos da educação.
• Convém ensinar a história da era planetária, que se inicia com o estabelecimento da comunicação entre todos os continentes no século XVI, e mostrar como todas as partes do mundo se tornaram solidárias, sem, contudo, ocultar as opressões e a dominação que devastaram a humanidade e que ainda não desapareceram.
• Será preciso indicar o complexo de crise planetária que marca o século XX, mostrando que todos os seres humanos, confrontados de agora em diante aos mesmos problemas de vida e de morte, partilham um destino comum.
Capítulo V: Enfrentar as incertezas
• As ciências permitiram que adquiríssemos muitas certezas, mas igualmente revelaram, ao longo do século XX, inúmeras zonas de incerteza. A educação deveria incluir o estudo das incertezas que surgiram nas ciências físicas (microfísicas, termodinâmica, cosmologia), nas ciências de evolução biológica e nas ciências históricas.
• Seria preciso ensinar princípios de estratégia que permitiriam enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza, e modificar seu desenvolvimento, em virtude das informações adquiridas ao longo do tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas, em meio a arquipélagos de certeza.
• A fórmula do poeta grego Eurípedes, que data de vinte e cinco séculos, nunca foi tão atual: “O esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho”. O abandono das concepções deterministas da história humana que acreditavam poder predizer o nosso futuro, o estudo dos grandes acontecimentos e desastres de nosso século, todos inesperados, o caráter doravante desconhecido da aventura humana devem-nos incitar a preparar as mentes para esperar o inesperado, para enfrentá-lo. É necessário que todos os que se ocupam da educação constituam a vanguarda ante a incerteza de nossos tempos.
Capítulo VI: Ensinar a compreensão
• A compreensão é a um só tempo meio e fim da comunicação humana. Entretanto, a educação para a compreensão está ausente do ensino. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensão mútua. Considerando a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão pede a reforma das mentalidades. Esta deve ser a obra para a educação do futuro.
• A compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é daqui para frente vital para que as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de incompreensão.
• Daí decorre a necessidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais necessário porque enfocaria não os sintomas, mas as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo. Constituiria, ao mesmo tempo, uma das bases mais seguras da educação para a paz, à qual estamos ligados por essência e vocação.
Capítulo VII: A ética do gênero humano
• A educação deve conduzir à “antropo-ética”, levando em conta o caráter ternário da condição humana, que é ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie. Nesse sentido, a ética indivíduo/sociedade/espécie necessita do controle mútuo da sociedade pelo indivíduo e do indivíduo pela sociedade, ou seja, a democracia; a ética indivíduo/espécie convoca, ao século XXI, a cidadania terrestre.
• A ética não poderia ser ensinada por meio de lições de moral. Deve formar-se nas mentes com base na consciência de que o humano é, ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade, parte da espécie. Carregamos em nós esta tripla realidade. Desse modo, todo desenvolvimento verdadeiramente humano deve compreender o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e da consciência de pertencer à espécie humana.
• Partindo disso, esboçam-se duas grandes finalidades ético-políticas do novo milênio: estabelecer uma relação de controle mútuo entre a sociedade e os indivíduos pela democracia e conceber a Humanidade como comunidade planetária. A educação deve contribuir não somente para a tomada de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta consciência se traduza em vontade de realizar a cidadania terrena.
Outras obras de Edgar Morin
» Meus demônios
Editora Bertrand Brasil
» Introdução ao pensamento complexo
Editora Instituto Piaget
» A religação dos saberes
Editora Bertrand Brasil
» A cabeça bem-feita
Editora Bertrand Brasil
» Ciência com consciência
Editora Bertrand Brasil
» A inteligência da complexidade
Fundação Peirópolis
» Educação e complexidade
Editora Cortez
Os sete saberes para educação do futuro: acesso à íntegra do livro (em francês).
Leia mais sobre Edgard Morin.